A Tralha da Tia-Avó
O Covid trouxe a pandemia, a quarentena ... os dias, as semanas, os meses e a reclusão.
As aglomerações desapareceram num piscar dos olhos e as ruas ficaram quase desertas.
Dona Dedé passou a ver e falar com o mundo através do celular e lap top.
Pedir licença para entrar nos lares de familiares e amigos não era preciso. Recebia convites através do Whatsapp, Facebook, Instragram e via e-mail para encontros dos mais diversos: bate papo, jantar on-line, 'lives' (show ao vivo), clube de leitura, aula de informática, jogos, troca de ideias e sugestões para pedir 'delivery' ... bastava receber convite que a Dedé se programava e participava.
Todos, quase todos, estavam on line e em contato com o mundo lá fora.
A grande maioria dos participantes não passava dos 55 anos. Apenas a Dedé dava seu ar de graça de cidadã sênior.
O bordão mais famoso do saudoso Abelardo Barbosa (Chacrinha/1917 - 1988) nunca foi tão verdadeiro: "Quem não se comunica, se trumbica.”
Muitos estavam pagando caro pela falta de conhecimento em TI (Tecnologia da Informática) e também por não ter um celular eficiente ou um servidor de rede/WiFi de boa qualidade.
Sábia Dedé que fez curso de Informática em 2008 e estava sempre atualizada.
Como surgem coisaradas a cada dia nessa rede mundial (WWW = World Wide Web)! Nos muitos 'lives' on line e visualizações Dedé reparou na falta de fotos nos ambientes dos 'hosts' (anfitriões). A grande parte desses ambientes virou 'home-office', outros verdadeiros palcos para 'shows'.
Aos 80 anos, Dedé começava a se preocupar com sua "tralha", o nome dado pela sobrinha-neta, Christina, aos seus pertences, seus tesouros sentimentais que havia juntado ao longa da vida.
Fotos dos tataravôs, bisavós, primos, irmãos, padrinhos, amigos, compadres ... todos expostos elegantemente em molduras, porta-retratos e álbuns que ela mesma distribuiu pelos quatro cômodos do seu apartamento. Suas paredes, todas as mesas e mesinhas, criado mudos e principalmente sua escrivaninha forradas com porta-retratos que não só decoravam os ambientes, mas carregavam imagens e lembranças dos familiares, não só amados, mas muito admirados. Dedé viajava no seu pensamento e imaginava como seria o triste fim da sua preciosa 'tralha'.
A cabeça dessa senhorinha começou a matutar ...
Que bacana! Sua sobrinha-neta Christina preparou uma festinha para comemorar os 60 anos da Mãe, a sobrinha da Dona Dedé. Seis convidadas apenas, mais a aniversariante e a responsável pela festa, pois a pandemia não permitia aglomerações. Sete senhoras no total, todas com 58 anos ou mais, e a Christina.
A sobrinha-neta exigiu a carteirinha de vacinação de cada convidada e pediu que todas comparecessem usando máscaras. Christina também pediu para não trazer nada pois tudo seria providenciado: álcool gel, máscara, toalhinha individual e qualquer coisa mais necessária. A primeira festa na pandemia da Dedé começaria às 15 horas.
A reunião daquela tarde foi muito aguardada pelas 'senhorinhas'. Dedé fez um 'playlist' com vários hits que levaram as 'meninas' de volta aos anos dourados. Não deixou o twist de fora, nem as baladas românticas. O bom e velho rock 'n roll botou todas pra quebrar. Apenas uma convidada fez 'download' do 'playlist' porque as outras não confiavam nessa tecnologia moderna e tinham medo de bugar seus celulares.
Pena que tudo que é bom tem que acabar. Às 20 horas tudo virou uma imensa abóbora e cada uma voltou para casa de Uber.
Quase uma semana depois a Dedé ligou para sua sobrinha-neta e perguntou se ela gostou do presentinho que havia plantado na sala de estar. A sobrinha não entendeu patavina e a Dedé apenas respondeu: "Quando achar, me liga." A jovem sobrinha pensou que era pura bobagem da velha tia-avó e deixou pra lá. De repente Christina começou a cantarolar a canção do desenho 'Frozen": "Let it go! Let it go! ..." ("Deixa pra lá! Deixa pra lá!)
O tempo foi passando e seis meses depois a Dedé veio a falecer devido às complicações respiratórias por causa dos malditos cigarrinhos que fumou dos dezesseis até seus sessenta anos.
Durante o velório, a sobrinha-neta ouviu alguns primos comentando a respeito dos presentes que a Tia Dedé havia enviado via Sedex à cada um deles.
Todos receberam um ou dois porta-retratos ou uma bela moldura contendo uma foto registrando um momento único na vida de cada um.
Perguntaram à prima Christina o quê havia achado do presente dela. Para não ficar por baixo, Christina respondeu sorrindo com a maior cara de pau que havia sido a primeira a ser presenteada pessoalmente com o porta-retrato favorito da Titia Dedé meses atrás.
Ao chegar em casa, a Christina foi logo à caça do presente de grego da Tia-Avó Dedé. Procurou que nem uma louca desvairada pelo dito cujo 'plantado' na casa. A sobrinha-neta, já sem fôlego, sentou-se na poltrona e passou seus olhos pelo ambiente. Pois é, tarefa nada fácil. Melhor colocar os óculos. Não demorou muito e Christina enxergou um volume não muito grande em cima da estante com seus livros da Agatha Christie e Lord Conan. Um pacote muito bem embrulhado com fita dourada. Bem a cara da Tia Dedé. Meses haviam passado e bem ali estava o tal pacote 'plantado' que passou totalmente despercebido. Como pode uma coisa dessas, Christina?
Já quase morta de curiosidade, foi logo rasgando o papel de presente dourado para descobrir 'a tal tralha' que havia herdado.
Era um lindo e antigo porta retrato prateado revestido de madre pérola que exibia a foto dela com a Tia-avó Dedé no seu 10° aniversário segurando seu primeiro livro de mistério: "O Caso dos Dez Negrinhos" (1939) da Agatha Christie.Um dia inesquecível para Christina e também para sua Tia-Avó.
Junto com o porta-retrato havia um cartão: "Agora minha linda Christina, essa tralha é sua."
Se arrependimento matasse ...