O PROFETA E O MEDO DA PLATEIA

 

     Lá pelas onze horas, quase meia-noite, voltando de São Paulo para Campo Grande, tivemos a decepção de não poder embarcar no aeroporto de Congonhas. A empresa aérea informou que teríamos que prosseguir até Guarulhos de ônibus para o embarque em outra aeronave.

     Na fila encontrei um amigo e irmão de fé, o Manuel, cantor de hinos na igreja, sujeito educado e cristão. Falávamos sobre nossas atividades, jogando um pouco de conversa para acalmar os ânimos por aquele atraso já quase a meia-noite.

     No ônibus, agora lotado de passageiros para o traslado, o rádio estava ligado. O motorista ia fechar a porta, isolando-se dos demais, quando um moço, torcedor do São Paulo Futebol Clube, pediu:

     - Motorista, deixe a porta aberta que quero ouvir o jogo.

     Eu, corintiano roxo, brinquei irreverentemente:

     - Rapaz, nem ligue para isso. O Atlético vai fazer um gol de pênalti aos quarenta e três minutos do segundo tempo. Quem vai bater o pênalti é o Coelho.

     Coelho era um lateral do Corinthians e nessa minha profecia ia uma pequena vingança contra o são-paulino.

     E lá íamos nós, conversando com o Manuel, eis que uns quinze minutos depois, finalzinho do jogo, já perto de Guarulhos, o locutor emocionado, narrando o jogo, colocava na voz todo o êxtase de um bom jogo de futebol. E grita:

     - Pênalti! Pênalti para o Atlético Mineiro!

     Pasme o leitor: quarenta e três minutos do segundo tempo.

     Os passageiros do ônibus quedaram-se silentes. Ninguém podia acreditar na profecia, mas ela estava ali, cumprindo-se na frente de todos, ou melhor, diante dos ouvidos da galera.

     - Coelho coloca a bola na marca do pênalti! Vai bater. Disse o locutor.

     Eu era um profeta. Agora todos sabiam que eu era um profeta poderoso. Acertei a hora, o tipo de gol e o jogador que o faria.

     Tudo o que eu queria era me por em pé e olhar o rosto dos ouvintes, mas estava escuro. Os passageiros, o jovem são-paulino e o motorista estavam estupefatos.

     - Vai bater, dizia o locutor. É um enorme castigo para a equipe tricolor.

     - É um castigo merecido, disse o comentarista. O São Paulo perdeu muitos gols e parou no jogo.

     - Vai lá, Coelho, chutou... Defendeu Rogério Ceni.

   O ônibus todo pulou... pareceu-me que todos torciam pelo São Paulo. Não haveria ali corintianos e palmeirenses? O jovem torcedor quase me esganava e gritava. O ônibus havia virado um Estádio.

     O locutor explicava que Rogério Ceni, o goleiro do São Paulo, havia se adiantado. Jogadores, diretores, técnicos e a torcida do Atlético pressionavam o juiz. Voltaria ele atrás? Mandaria bater o pênalti novamente?

     Havia ainda uma esperança para o profeta, eu.

     O árbitro, porém, não voltou o lance. Não haveria gol do Coelho, de pênalti, aos quarenta e três minutos do segundo tempo.

     Ficou uma pergunta: por que todos haviam se virado contra mim? Eram todos torcedores do São Paulo? Não, não era isso. Ninguém quer conviver com um "profeta" que tenha poderes especiais, de vida ou morte, nem que seja em uma simples viagem de ônibus.

     E se o gol valesse e eu olhasse para alguém, dizendo:

     - Você vai morrer amanhã!

     Era muito poder para um homem só.

   Fato dito, contado e verdadeiro. Resta uma análise de como reagem as pessoas contra quem tem poderes de prever, ou mesmo quem sabe, poderes menores, talvez simplesmente a coragem de dizer a verdade.

     O leitor pode me perguntar:

     - Quem pode testemunhar isso para que eu saiba se é verdade?

     Pois é, o Manuel morreu, cantando um belo hino. Não tenho mais minha única testemunha.