Das Minhas Lembranças 60
Outubro de 1951, dia 20. Não há registro das horas.
Consta na certidão o nascimento de uma criança, vinda ao mundo pelas mãos de uma parteira, nos grotões de Minas Gerais, no distrito de São João do Oriente. Testemunhas relataram gritos de choro, assim que o cordão umbilical fora rompido. Aos quatro ou cinco anos a família da criança mudou-se para outro roçado, no córrego Boleirinha, zona rural de Jampruca, localizado no Vale do Rio Doce, na divisa com o Vale Mucuri. A mudança ocorrera, por conta de desavenças políticas. Em Jampruca crescera entre o roçado e a rua. E o amor ao pé de ingá, onde sempre parava, ora de bicicleta, ora de charrete, para saborear os frutos e descansar sob suas sombras; entre o trabalho no campo e o lazer com os filhos de companheiros camponeses, ou no pequeno distrito, jogando sinuca e futebol; indo ao cinema do Heleno. Os estudos primários eram, também, uma válvula de escape. De criança a adolescência, tudo passou muito rápido. Aos dezesseis, novamente por conta de desavença política, a família mudou-se para Engenheiro Caldas, mas lá permanecera por curto período: entre 1967 a 1970, quando, novamente mudam de cidade, desta vez, não por desavença política, pois o pai abandonara a contenda, mas por outros motivos, que não vem ao caso, e para não alongar a narrativa. Para onde ia, levava consigo o segredo do evento ocorrido à sombra do pé de ingá. Mudaram-se, então, para Itabirinha, em 1970, ano do tri. Um anos antes, em 1969, matricula-se no Ginásio Agrícola de Colatina-ES, em regime de internato. Tempos do auge da ditadura militar; do milagre econômico; do "ame-o ou deixei-o"; de "este é um país que vai pra frente". Sem esquecer a lembrança do pé de ingá e do evento que ali ocorrera.
Para que a crônica de uma vida não seja prolixa, o autor e personagem muda o rumo da prosa, e passa a falar de como a literatura entrou em sua vida. Tudo começou em Jampruca, lendo foto-novelas, quadrinhos e livros de bolso, que os irmãos e uma irmã, traziam das cidades grandes. Depois seguiram-se os clássicos nacionais e estrangeiros. José Alencar, Machado de Assis, Tolstoi, tudo que caía em suas mãos, até conhecer as primeiras bibliotecas e "comer" muitos livros. Das leituras a escrita, foi um pulo. Primeiro com diários, seguidos dos primeiros versos. A literatura descortina o mundo, abre horizontes. Assim, o jovem desbravou florestas; singrou mares; apaixonou-se por capitus e julietas; viu soldados e civis mortos nos front's; revoltou-se com as injustiças, que os livros de história e os romances narravam; buscou entender o sentido da vida com os livros de filosofia e a universidade da vida. Fez greve. Continuava sonhando revelar o que ocorrera sob a sombra do pé de ingá.
Inevitavelmente a leitura despertaria a sua consciência política. Em busca de emprego, independência e sobrevivência, foi morar na capital. E do chão da fábrica ao sindicato, foi rápido. Quando a consciência de classe e política de que a vida plena é um direito de todos se instala, não larga mais. Paralelamente a ação política, escrevia poesias, crônicas e contos. Sedimentava o escritor autodidata.
Hoje, com vários livros publicados em edições marginais, assiste ao que pensou ser uma página virada na história: a nossa frágil democracia novamente golpeada, desta vez, não pelos militares, mas por uma quadrilha de parlamentares em conluio com a turbamulta. E como a consciência política e social instalou-se definitivamente, continua em ação, para mudar esta realidade.
E reflete se deve mesmo revelar o que aconteceu à sombra do pé de ingá.
SOBRE PROVA DE VIDA
Em 2020 a pandemia da COVID-19 chegou com força, dizimando vidas mundo afora. Eu me encontrava em Cruz das Almas, no Recôncavo baiano, onde tive de permanecer até 2022, por conta das barreiras sanitária e de apego. Nesse período escrevi algumas crônicas, que resultaram no livro Prova de Vida, lançado em 2021 pelo Clube de Autores. A crônica abaixo, dedicada ao meu neto ficou assim:
Tamanho não é documento
Para o meu neto Raul Rodrigues Estanislau
Quando o Raul nasceu ele era pequeno.
Imaginem um grão de mostarda. Raul era maior, bem maior.
Comparado ao grão de mostarda Raul era grande, enorme. Um gigante!
Agora imaginem a mãe de Raul, o pai, os avós, tios e tias...
Comparando assim Raul era pequeno. Nesse tempo Raul não falava.
Sempre que queria comunicar alguma coisa, como está com fome ou sede, ele gritava, esperneava e até chorava.
Até que um dia Raul cresceu e foi pra escola.
Aprendeu a ler e escrever.
Ah, e desenhar. E principalmente brincar!
Até que um dia chegou o coronavírus. Menor, mas muito menor que um grão de mostarda. O coronavírus é tão pequeno, mas tão pequeno que a gente nem consegue enxergar a olho nu. Só com microscópio!
Como pode um bichinho assim, pequenino assim, trazer tanto medo às pessoas a ponto de obrigá-las a ficarem em casa! Das escolas fecharem!