O Julgamento das Baratas

Cá estou eu, esperando esse julgamento fajuto. Como eu iria imaginar? Em que realidade uma faxina da tarde me colocaria nessa situação?

“Eu só matei uma barata!” grito em desespero, apertando os palitos de dente que formavam minha cela.

Silêncio é a resposta do guarda. Seus dois pares de braços cruzados sobre o peito, seus olhos, completamente negros, fixados no horizonte. A casca grossa em suas costas remexe, revelando brevemente asas translucidas e pouco desenvolvidas. Uma multidão dos mesmos olhos escuros se reúne, em fúria, defronte minha prisão.

Baratas! Meras baratas! Um sem-fim, originário de cada canto escuro de minha residência. Já desconfiava de sua anormal organização, visto que surgem de surpresa mesmo após as limpezas mais profundas, mas como adivinharia sobre a criação de um raio encolhedor? Em que mundo insetos se uniriam numa multidão em fúria, criariam celas e guardas? Quando baratas começaram a montar tribunais? Até onde essas criaturas chegaram?

Absorto no absurdo, mal percebo o aproximar de pequenas patas. Uma delas, com um fino fio de feltro pendurado ao pescoço, como uma gravata improvisada, se aproxima de mim. Um brilho estranho permeia o breu de seu olhar. Uma mistura de terror e curiosidade.

“O nome não importa. Aqui você é o espécime humano número 1. Você será julgado pelo crime de blattocídio em massa e tentativa de genocídio através do uso de armas químicas. Em circunstancias naturais, você seria executado sem segundo pensar, mas o Povo Livre das Baratas decidiu pelo seu uso como exemplo de nosso sistema legal. A contragosto, fui designado como seu advogado. Aviso-lhe que, dadas as circunstâncias e provas que o sistema possui contra você, uma confissão seria a saída mais simples. Você aceita a responsabilidade por seus atos?”

“Senhor, eu não sei o que está acontecendo. Eu só matei alguns insetos!” Respondo com ênfase.

“Até no corredor da morte vocês humanos se mantém em sua posição de superioridade? Você tirou vidas de nosso povo. Trabalhadores honestos, soldados dedicados, mães de família, tudo pela sua incapacidade de olhar para baixo e conferir o que há sob seus pés. Tudo pelo seu conceito elitista de limpeza. Tudo por considerar que nossa vida não importa.” A barata cospe defronte meus pés, um liquido esverdeado e borbulhante. “Nos vemos no julgamento. Mas não espere escapar dessa.” Diz enquanto se afasta, sem olhar em meus olhos uma única vez.

A multidão grita, mas nada compreendo de seu discurso. Questiono se tais sons são pronunciáveis pela garganta humana, gritos raspados e agudos, uma orquestra de violinos desafinados. Há ódio e medo presentes no timbre, além de um tom lamurioso como o som de uma lágrima. Uma pequena baratinha, talvez uma criança, arremessa algo em minha direção, com um profundo berro agudo, caindo sobre os joelhos em seguida. Mas ninguém vem acalmar seu choro violento. Não me sai da cabeça que aquele pequeno ser se lamentava pela falta da mãe.

Por horas perdurou tal sinfonia. Em intervalos regulares, um dos insetos se aproximava da cela. Um trouxe ferramentas e examinou meu corpo, coletando amostras de pele, sangue e cabelo. Outro fazia gestos estranhos e ritualísticos, lendo de um livro grosso e tocando minha testa. Um terceiro se contentou a ficar fora das grades, com uma tela, a desenhar. Nenhum parecia compreender minhas palavras, me dirigindo os mesmos gritos raspados da multidão.

E subitamente, silêncio. O mar vermelho de baratas, antes agitado, se acalma por alguns instantes, para então abrir-se em um estreito corredor. O guarda mais próximo destranca a cela e acena com a cabeça na obvia direção, e para lá sigo. Cada gota daquele oceano insectoide parecia pronta para pular em cima de mim. Para me trucidar. Para me devorar. Mas numa frieza tão humana que beira desumanidade, nenhuma onda se forma, nenhum movimento, nenhum ruído. Atravesso sem saber se me espera a Terra Prometida ou as mãos do Faraó.

Chego a um círculo formado pelos insetos. No meio dele, avisto figuras em particular, incluindo o fino fio de feltro que indicava meu advogado. Me aproximo, todos os olhos sobre mim. Meu defensor levanta o olhar, não em minha direção, mas sim para a esguia e comprida barata no exato centro da circunferência. A mesma me analisa profundamente.

“O réu fez-se presente, iniciaremos. Para vossa conveniência, Espécime Humano Número Um, regeremos o processo em seu idioma nativo. Deves ter percebido que poucos são os que o compreendem e menos os que o dominam. Esperamos que aprecie a generosidade. A promotoria está livre para iniciar."

Não demorei a perceber que estava perdido. Tudo estava lá, documentado e registrado. Um enorme tsunami criado pelas águas da mangueira, uma nuvem toxica destruindo lentamente os organismos. As baratas que sobravam eram pisoteadas. Eu era culpado. A multidão de olhos negros se remexia, agitada. O promotor encerra a apresentação das provas e dirige seu olhar a mim.

“Teus atos demonstram o ódio que tens pelas vidas que considera inferior. Nos despreza por revirarmos o lixo para comer. Nos despreza por vivermos nas ruas, escondidos nos cantos mais escuros. Nos despreza por nossa aparência não lhe agradar. Nos despreza porque sua sociedade prega o mesmo ódio todos os dias. Esquece-te, entretanto, que somos filhos da mesma terra. Compartilhamos o mesmo ciclo, e ambos chegamos até aqui lutando pela sobrevivência. Esquece-te que temos nosso papel, tão crucial quanto o seu. Esquece-te que existe algo além do seu mundo de luxo e conforto. Teremos a certeza que você não se esquecerá novamente.”

É o fim. Provas definitivas provindas daqueles poderosos seres surgiam de toda direção. Tecnologias avançadas de analise policial, relatos traduzidos de familiares de vítimas, até um suposto profeta deu seu parecer. O juiz oferece a palavra a defesa. Aceno para o fino fio de feltro. Estou pronto para confessar. O advogado informa minha decisão à promotoria, e se encerra o tribunal. Não que o resultado pudesse ser outro. Estava condenado desde a cela.

“Muito bem, Espécime Humano Número Um” diz o juiz. “Dada sua confissão, sua sentença será abrandada. Não o condenaremos a morte, iremos apenas testar a mais nova invenção do Povo Livre das Baratas. A chamada ‘Maquina de Kafka’ transformará seu corpo e mente humanos em um de nós. Beberemos de sua humanidade e conhecimento, atrairemos humanos importantes para nossos tribunais. Serás o primeiro passo nessa grande empreitada, e serás lembrado como o primeiro a ser transformado.”

Caminho sem resistir. Resistir é inútil. Fugir é inútil. Pelo menos eu viverei. Pelo menos verei o Sol mais uma vez. Talvez a vida não seja tão ruim. Enquanto sou fechado no tubo de vidro, me lembro de minha existência humana. Questiono se não nos corrompemos com o poder que tomamos da natureza. Meu último pensamento como humano questiona se minha humanidade é tão valiosa assim.

Ariel Alves
Enviado por Ariel Alves em 16/04/2023
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