Um episódio de censura
Certa vez, recebi um convite para fazer teatro infantil. Não tinha muita ideia sobre isso, embora já tivesse assistido a algumas peças. Um professor do ginásio — naquele tempo chamava-se ginasial ao ciclo que ia do quinto ao oitavo ano escolar, hoje do sexto ao nono — já nos apresentara aos jograis e aos textos teatrais nas aulas de literatura. O entusiasmo e as expectativas eram grandes. Tínhamos ali a oportunidade de exercer nossa criatividade, de conversar sobre variados assuntos, de aprender a partir de novas bases conceituais, de conhecer outras opiniões, críticas da realidade e livres de amarras conservadoras. Meninos e meninas trabalhando em conjunto, descobrindo diferentes leituras e deixando aflorar a sensação de liberdade. Como recusar?
As circunstâncias eram favoráveis em alguns aspectos e desfavoráveis em outros. Explico. A cidade contava com um espaço apropriado às apresentações teatrais, com capacidade para pouco mais de 100 pessoas. Era relativamente pequeno se considerarmos os tempos atuais, mas… Havia públicos diversos, tanto para o teatro infantil quanto para o teatro adulto — afinal, não há teatro sem público, sem plateia. Nós, recém-chegados, estávamos numa idade de confluência entre os dois públicos. Queríamos conquistar maior independência intelectual, e participar das montagens teatrais contribuiu para que ela chegasse de forma mais aberta. A atividade não se restringia aos ensaios, mas à descoberta de autores, de técnicas de interpretação, de memórias de experiências artísticas essenciais na história das sociedades. Nossa sorte foi poder juntar teatro, literatura, artes plásticas, cinema, política, viagens e ousadias diversas.
Os aspectos desfavoráveis eram os de sempre: a repressão política, a repressão sexual, o machismo, a misoginia, a falta de recursos e apoios, a distância dos grandes centros culturais do país etc. A sociedade brasileira dos anos 1960 e 1970 passava por uma dura prova de resistência, de luta, da coragem de dizer não à ditadura, sim à democracia e à liberdade de criar, de escrever, de dançar, de ler e de escolher seus próprios caminhos. Manifestações teatrais no eixo Rio-São Paulo davam mostras de vigor cultural fantástico: o Teatro de Arena, a encenação de textos revolucionários e inovadores, o Teatro Oficina, o Grupo Teatro Popular União e Olho Vivo, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri entre outros.
Num determinado dia, com o texto decorado, a peça ensaiada, as marcações definidas, o figurino pronto e os folhetos impressos, recebemos a visita do censor, conforme agendado. Só nós e ele, sessão exclusiva. Mal-humorado, texto e caneta nas mãos, ordenou que começássemos o espetáculo. Ao final, nos devolveu o texto, com cortes incoerentes, absurdos, e o certificado numerado e assinado. Qual o sentido disso? O que o sujeito, um burocrata embrutecido, autoritário, sabia de teatro infantil? Nada! Pura demonstração de poder. O que ele pretendia? Certamente, controlar o futuro. É preciso lembrar-se dessas situações para evitar que se repitam.