Porque choramos quando um amigo morre (*)

(*) Nem tudo são flores no Planeta Jardim. Crônicas de um mundo possível

Capítulo:

Porque choramos quando um amigo vai embora mais cedo

APIABÁ (20.8 S, 47.5 O), 14/04/3.323

Dias atrás fiquei sabendo que o Ralf faleceu, numa cidade distante onde ele foi viver. Senti muito, mesmo.

Há pouco, enquanto apreciava o por-do-sol no mirante da Praça Oeste, relembrava meu luto e me perguntei porque choramos quando morre uma pessoa que amamos. Se é na outra vida que realizamos nossa verdadeira contribuição para a evolução do Universo, se é para o momento da partida que vivemos a vida inteira, por que lamentar a morte de alguém?

Ralf foi-se na hora que Deus disse que era a hora, porque nem uma folha cai da árvore sem que seja de acordo com a vontade da Inteligência Criadora do Universo. Mas fiquei triste assim mesmo.

Pensei bem e percebi: lamentamos porque o amigo, ou parente que se vai certamente gostaria de ficar um pouco mais tempo por aqui, mas não é só por ele que lamentamos. É por nós próprios. Pela nossa perda, pela ausência irremediável que resta em nossas vidas, pelos assuntos que ficam inacabados quando cessa a presença física de alguém. É pelo que pretendíamos fazer na companhia dele e que não mais poderemos fazer, a não ser talvez numa futura e improvável encarnação, em forma de resgate, o que costuma demorar um bocado e, quando acontece, não sabemos o que estamos resgatando.

Nos velórios, a viúva, ou o parente mais chegado, fica chorando ao lado do caixão enquanto todos os outros presentes conversam animadamente e até contam piadas. Isso sempre me intrigou, até que percebi que o velório não é apenas uma cerimônia de luto, é principalmente um evento social. No velório, por alguns instantes expressamos nosso luto e nossas condolências aos familiares do defunto, e a cerimônia termina ali. No instante seguinte, começamos a encontrar amigos que há muito não víamos, e é sempre uma alegria revê-los. É a mesma alegria de encontrá-los num baile de formatura, num encontro de turma de colégio, numa casualidade qualquer. Não tem nada a ver com o velório em si. Uma coisa é o velório do amigo que partiu, outra são os amigos que nos brindam com o reencontro, felizes de nos ver.

Voltando ao Ralf.

Ralf Rickli era como aquela vela de procissão que vai acendendo todas as outras. Iluminava quem tivesse contato com ele. Ele esclarecia e se doava.

Nos conhecemos lá pelo ano de 3.278, no Serviço Obrigatório. Ele tinha vindo de outra cidade, Guará dos Pinheirais. Um amigo em comum nos apresentou e logo fizemos uma amizade que viria durar não muito tempo, mas que seria decisiva para a formação de minha alma-intelecto, muito mais que o carisma de qualquer professor.

Lembro de dois momentos engraçados de nossa amizade. O primeiro foi quando ele me apresentou um amigo músico, dizendo que eu iria gostar muito de conhecê-lo. Era o pianista e escritor Silvio de Lantana, que eu já conhecia há mais de dez anos, que tinha sido meu colega nas turmas do Segundo Setênio. Os três demos risadas à beça, e a risada do Ralf era contagiosa, diferente, entre cômica e estranha, porque até o seu jeito de rir tinha algo de intelectual.

O segundo “causo” foi quase igual. Apresentei pra ele a Lorena, que viria a ser minha esposa alguns anos depois. Eles se olharam e começaram a gargalhar. Se conheciam desde quando eram bebês, pois Lorena também era nascida em Guará dos Pinheirais.

Nessa época, eu tinha vinte e poucos anos, era tímido, um tipo de “jacu do mato”, mas tinha uma curiosidade imensa por tudo o que fosse próprio da vida laica cristã, amistosa, pacífica, cordial, democrática, cooperativa, compassiva, respeitosa, espiritual.... e essa sabedoria Ralf sempre pareceu-me ter de sobra. Tanto que veio a resumir sua visão de mundo numa tese que chamou de Convivialismo.

As conversas que tínhamos eram sempre verdadeiras e divertidas aulas. Para tudo ele tinha uma opinião, um conhecimento a mais, uma teoria, uma piadinha sutil e certeira, nunca deixava você “na mesma”. Sempre tinha o que acrescentar.

De tudo o que aprendi com ele, o mais importante foi um sistema de pensamento espiritualista do início do século XX chamado Antroposofia. Essa ciência espiritual, desde quando se inaugurou a civilização da Era Atual, já não é novidade alguma, ao contrário, está na base da nossa cultura, toda ela foi abraçada pelo senso comum. Na Era Moderna, entretanto, era uma verdadeira heresia para os cientistas da época, que eram absolutamente materialistas, não admitiam oficialmente o conhecimento de nada que não pudessem ver, ouvir, cheirar, ou calcular matematicamente.

Nunca me aprofundei deveras no estudo da Antroposofia tanto quanto o Ralf, porque não é do meu feitio aprofundar conhecimentos ao nível da proficiência, e escrevo isto rindo aqui comigo, porque Ralf odiava a superficialidade. Ele sabia que sou assim, e censurava minha mania de tirar conclusões científicas ou filosóficas com base em informações ouvidas de qualquer um, sem ao menos confirma-la com a leitura de um livro ou pelo menos de uma resenha.

No que ele me ensinou naquelas nossas conversas, enquanto fazíamos em dupla o patrulhamento das pacíficas ruas de Apiabá, foi que escolhi e talhei a pedra angular do meu edifício intelectual, do meu modo particular de entender o Cosmo. Ele me proporcionou a linha mestra para eu consolidar minhas crenças. Por isso eu sempre considerei o Ralf um mestre, um guru. Por isso eu sempre o admirei mais que a qualquer outra pessoa que já conheci nesta encarnação. E por isso escrevo com lágrimas nos olhos. Lágrimas de gratidão.

Quando Ralf foi embora de Apiabá, para trabalhar no Instituto Biodinâmico, em Botucatu, ficou um buraco vazio bem grande na minha vida. Nas décadas seguintes, tivemos alguns raros contatos e ele morreu antes que eu tivesse a oportunidade de revê-lo com tempo, e no jeito, de dizer o quanto ele foi importante para mim, como foi para muitas outras pessoas, que eu sei.

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EM TEMPO, à parte do capítulo:

Considero Ralf Rickli o melhor – talvez o maior – intelectual brasileiro “de esquerda” da virada do milênio. É assim que eu gostaria que ele fosse lembrado: um prócer da brasilidade, da latinidade, do Convivialismo, do humanismo do terceiro milênio, que haverá de ser de muita paz, prosperidade e cordialidade.

Um sonho meu, não mais que um sonho, porque demandaria uma fortuna de milhões, é concretizar na forma de ONG uma ideia que Ralf escreveu numa tese do mestrado: educar pais jovens para a criação de filhos psicológica e espiritualmente saudáveis, com o propósito de "desativar o gene da violência". Imagino um modelo de organização com estrutura física e administrativa apropriada, conteúdo pedagógico definido, treinamento de educadores, multiplicação através de franquias.

Foi a partir desse sonho que comecei a imaginar o Planeta Jardim, a civilização da Era Atual, e as “crônicas de um mundo possível” daqui a 1.300 anos.

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 15/04/2023
Reeditado em 10/12/2023
Código do texto: T7763974
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