Cordéis fora da lei

Fui eleito presidente da associação de poetas burocráticos. Sufrágio por unanimidade, porque “toda unanimidade é burra”, conforme lembrou zombeteiro colega, citando Nelson Rodrigues, o maior cronista nacional, também escolhido pela totalidade dos votos. Desde então, dedico-me a regularizar o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, registro menosprezado pelos meus antecessores, certamente descrentes do poder da burocracia para atormentar a vida de pessoas físicas e demais entes confederados, mais ou menos legalizados. Contratei um contador que foi logo me contando: sua instituição deve explicações ao fisco. Jamais declarou imposto de renda retido na fonte ou represado nas entrelinhas dos poemas de pé quebrado, não deu bola para o programa de integração social e fez ouvido de mercador ao clamor do mercado, ainda tendo a pachorra de reclamar dos juros altos do Banco Central. Para completar, escondeu as demonstrações contábeis, fingiu-se de morto na conta bancária sem movimentação e escamoteou os lucros e prejuízos, seguindo a linha torta daquele famoso “posto ipiranga” e suas medidas provisórias de arrombamento do teto de gastos.

Com essas credenciais de pária do fisco nacional, fui humildemente à presença da Receia Federal para fazer um acordo de transação e pagar as multas pelo crime de sonegação perpetrado por essa entidade poética. Poesia que não paga imposto não se cria. De cara, fui recebido por uma atendente fria, protocolar e chata, dessas que trazem nas costas: “posso ajudar?” e você responde mentalmente: não! A dita cuja moça atendente agendou minha consulta para outro dia, no que eu respondi, ainda mentalmente: “menos burocracia, mais poesia!” Há quem acredite em mim, mas a Receita Federal não é uma dessas entidades. Mandaram-me para um cartório para saber se eu seria realmente o que dizia ser e se tinha ficha limpa, idoneidade suficiente para dialogar com a Receita. Sem desistir nem esmorecer, redigi um texto extraordinariamente bem escrito, num português excelente, muito bem estruturado, descrevendo as aventuras de um poeta no submundo das regras e procedimentos do sistema. Fui ignorado e mandado para outra sessão e desta para casa, esperar a decisão administrativa sobre meu pedido de reinserção do clube dos poetas no rol dos felizes pagadores de impostos e taxas.

Enquanto aguardo, reclamo da vida nesta crônica e confesso: a vontade que dá é bolsonarizar geral, dar uma banana pro fisco e passar a mercadoria no “mole”, sem nota fiscal nem instrução normativa, que peculato foi feito pra isso mesmo. Prevaricação incluso. Não sei quem inventou a sonegação do imposto sobre poesia. Mas tem meu abono.

Meu amigo Bento Júnior, tesoureiro da dita cuja associação dos poetas sem inspiração para os trâmites burocráticos, apela para a simplicidade nesses processos. “Esse povo cria tantas normas que, no fim, só ajuda aos sonegadores profissionais e sobra para nós, amadores. A coisa é muito simples, a vida não tem complicação. Quer saber quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, por exemplo? É só chamar o ovo e a galinha. Quem chegar primeiro... Entendeu?” Com esse humor babaca, meu tesoureiro não ajuda e trama contra minha disposição de levar a sério o processo. Vou em frente e já tenho argumento. Assim como as joias do Príncipe da Arábia Saudita foram incorporadas à coleção oficial brasileira, conforme determina a legislação, peço, data vênia, que a Receita Federal agregue os poemas dos colegas sócios da entidade como bens coletivos, mesmo porque são obras referenciais do cordel brasileiro, patrimônio cultural imaterial do Brasil, especialmente da Paraíba onde nasceu.

Alguém disse um dia desses: “O Brasil deve mais ao Pelé do que Pelé deve ao Brasil”. Acho que foi Xico Sá. Mutatis mutandis, idem com relação ao cordel. Vamos dar isenção de impostos para o cordel brasileiro, minha gente! Mesmo porque a tradição é não dar bola pra os esquemas oficiais quando se trata da poesia popular. Você não sabe, mas o folheto “Romance do pavão misterioso”, autoria do guarabirense José Camelo de Melo Rezende, vendeu mais de um milhão de cópias, a maior tiragem de uma obra poética no Brasil, sem jamais pagar um tostão de imposto. Cem anos de sonegação. De minha parte, escrevo cordel desde 1980. Sou artífice em toda cadeia de produção: crio a capa, diagramo, digitalizo, imprimo e procedo ao acabamento do folheto. E vendo nas feiras e nos quiosques dos amigos. Posso ser enquadrado como trambiqueiro e mamateiro artístico no Brasil, país que não concede isenção de impostos a obras de arte. Colega bibliotecário questiona: por que não registra seus folhetos no ISBN? É basicamente um código de barras que permite identificar a obra em qualquer país. Para que o livro seja admitido em qualquer livraria, comércio livreiro, biblioteca, acervo literário, ele deve ter o registro do ISBN. O que significa que meus folhetos serão eternos marginais desclassificados, como o “Romance do pavão misterioso”, que vendeu mais do que Jorge Amado. Fure o cerco e peça o pacote dos meus melhores cordéis pelo e-mail: mozartpe@gmail.com

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 11/04/2023
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