Das Minhas Lembranças 59

No começo a narrativa parecia sem norte. O sul, capengava. Fragmentos de uma percepção particular do cotidiano, sob a influência das leituras de Franz Kafka. Para tumultuar ainda mais a mente do recém chegado à capital mineira, vindo do interior, a ditadura impedia a real compreensão dos fatos, por conta de perseguições e censura. Havia uma cortina de fumaça. Havia o movimento estudantil e operário, sob vigilância e repressão.

Em 1977, provavelmente, comecei a escrever A Construção da Estrada de Ferro, que não sabia exatamente onde chegaria. Não tinha um plano da obra. O plano era a vida, como a percebia. Antes escrevera um pequeno conto, Ninguém Atravessa a Ponte, que seria aproveitado, em parte, na Construção. Estava, também, sob o impacto das leituras de Sartre e Camus. Garcia Marques e os Cem Anos de Solidão, além José J. Veiga, Murilo Rubião, que trouxeram mais luzes. Marx misturou tudo e me fez "compreender" o tema da alienação. Burocracia e alienação, é disso que fala o livro.

Em 2014, depois de mais de trinta anos, entre a gaveta e a escrivaninha, dei a narrativa por "encerrada". Uma novela? Um romance? Não me apego a gênero e regras literárias. Escrevi como se delirasse. É um livro, que talvez nunca saia da gaveta, construído e reconstruído ao longo de mais de trinta anos e que contém umas trezentas páginas. Em 2019 fiz a "última" revisão.

O final do livro ficou assim:

Fabrício Valdéz esfregou os olhos com os punhos cerrados, naquela manhã em que o cheiro de rosas brancas invadira seu valhacouto, serpenteou sob a manta de estampas coloridas, presente dos ciganos, que a cada quatro anos, no verão torrencial, armavam barracas de lonas puídas em suas terras, para vender tachos de cobre aos moradores do vilarejo, cavalos e burros decrépitos como se fossem jovens, graças a artimanha de colori-los com tintas extraídas de plantas. O cheiro das rosas penetrou em suas narinas, expulsando de vez o sono de uma noite premonitória.

Sentou-se com dificuldades, tateou o chão com os pés à procura das pantufas de cetim rotas, única lembrança de Catarina Flor, que o abandonara naquela noite de tempestade desmesurada, com as andorinhas em algaravias, e que decidira, para colocar-se a salvo dos tormentos dos remorsos, revelar com quantas mulheres havia se deitado no transcorrer de vida a dois. Pela primeira vez ao longo dos trinta e três anos de solidão, praguejou que merda ao refletir sobre o sentido das palavras de Flor, seu desgraçado, réprobo, porque não carregou esta ignomínia para o túmulo!

Às vésperas de completar noventa e oito anos, trinta e três de solidão em companhia de bêbados, drogados e prostitutas, não estava certo de alcançar a cocaína que o reanimava desde que Catarina Flor desaparecera naquela noite, sob a chuva de granizo, que provocara uma desordem descomunal no vilarejo, matando porcos, cavalos, galinhas, cães e outros seres indefesos, destelhando casas, deixando por vários dias um odor putrefato.

O cheiro de rosas brancas intensificou-se ao tentar tocar a aldrava e desta vez lamentou que merda, como pude magoar minha prófuga andorinha! Neste instante uma rajada de vento descerrou as janelas e pétalas de rosas, como aves migratórias invadiram o quarto, pousando suavemente sobre sua cama, no chão, nos móveis. Milhões de pétalas foram cobrindo o corpo caquético de Fabrício Valdéz e entre elas identificou Catarina Flor, vestida de branco, dançando com leveza, tendo nos lábios e nos gestos a pureza dos justos. As pétalas foram se amontoando placidamente no valhacouto até alcançar o teto. As que não conseguiram espaço interno foram amontoar-se ao redor da casa sob os olhares diáfanos de lírios, de rosas.