AOS MEUS ANÔNIMOS LEITORES
Numa madrugada insone fiquei matutando sobre os meus desconhecidos leitores - como você. Quem são essas criaturas que entram nas minhas palavras e extraem delas sua alma, talvez seu bojo mais escondido. Quem são as pessoas que nunca serei capaz de me defrontar, com quem nunca trocarei olhares, nunca misturarei nossos suores. Se um dia nos cruzarmos na rua, certamente iremos nos mirar de canto de olho, arriscando um meio sorriso, talvez um assustado aceno de longe, talvez nos ignoremos e vamos em frente. Quem são esses que pegam o que escrevo e reviram tudo, bagunçam tudo, fervem tudo num tonel do seu imaginário. Posso ter, no baú desses meus leitores. fugitivos da justiça, santos ainda não validados, dançarinas cansadas depois de um longa noite de cabaré, gênios a serem reverenciados pela humanidade. Talvez reúna, entre aqueles que me leem, ermitões que se enclausuraram numa gruta e só assim puderem bater um papo com Deus. Pode ser que alguns dos meus leitores sejam ciganos húngaros, vagando de chão em chão num efêmera empreitada sem fim. Pode ser que entre vocês, singelos leitores, existam amas de leite ou velhos surrados que não param de gargalhar num êxtase dantesco. Quem sabe se não trago, nesses meus incautos leitores, algumas crias desgarradas da matilha, que ficam olhando pros lados, atônitos, sem saber pra onde prosseguir. Essas dúvidas nunca abandonarão a trincheira que intestinam meus passos. É nessa fonte que recarrego as bazucas fagueiras que fazem minhas palavras se agruparem em textos como esse, inocentes textos, que conseguem ressuscitar meus trecos mais aflitos, mais esquisitos, mais livres, mais sei-lá-o-quê.