A Caixa de Pandora Mental

Lembro me do dia que a conheci. Apoiado na parede com meu copo, observava quieto o ambiente inóspito para um adolescente introvertido. Por ironia cósmica nossos olhares se cruzam, e sem sinal ou razão, ela joga o cabelo e começa a caminhar, como uma modelo na passarela. Os olhos semicerrados e um sorriso de desdém no rosto. Uma aura oceânica que me esmaga sob sua pressão.

A conexão foi instantânea. Não romântica, sexual, fraternal, mas mental. Padrões voavam de um para o outro, em um debate filosófico sem fim sobre a futilidade da existência. Uma longa conversa, um adeus, e silêncio. Ela estudava em outra escola, seu interesse era em Medicina, então sua vida se resumia aos estudos. Nos encontrávamos nas férias, duas vezes ao ano. E recontávamos as notícias regadas a ironia, jogando ao ar termos complexos de escolha lexical questionável. Era sempre um jogo com ela.

Sempre tive problemas com abandono. Odeio ser deixado, esquecido. Era difícil lidar com minha amiga, porque na maior parte dos dias ela não estava lá. Doía. Minha solução inocente e adolescente foi criar uma Caixa de Memorias. Uma caixinha mental, onde meu cérebro armazenaria não só as memórias com minha amiga, mas um pequeno pedaço das minhas memorias. Um resumo, uma fofoca, algo que acontecia no meu ano. Dessa forma eu poderia me focar nos estudos, na vida, e durante as férias, quando ela voltasse, a caixinha seria aberta e eu me lembraria de tudo.

E assim se foi, a caixinha se abrindo e se guardando, até o fim dos vestibulares. Ela passou! Numa ótima universidade em São Paulo! E eu também, em outro canto do mapa. Nos demos adeus, prontos pra mais uns bons meses, se necessário até uns anos, e cada um seguiu seu caminho. E a caixinha lá ficou, juntando poeira e memorias no fundo do meu inconsciente. Eu me lembrava dela, da existência dela, de algumas memórias, me preocupava com ela. Mas era frio. A caixa estava fechada, esperando para ser aberta.

E por 7 anos essa caixinha permaneceu fechada. Pois nesse tempo, nunca nos vimos. Ela não se mantinha em redes sociais, então nem contato tínhamos. Muitas reviravoltas e eventos acontecem em 7 anos, muitos ápices, muitas quedas, muitas dores. Cada qual, um pedacinho ia pra caixinha de memórias, inocentemente esperando ser aberta para libertar esse pequeno peso. E se mantinha lá, acumulando pressão, com sua energia potencial aumentando a cada novo evento.

E após 7 anos, surgiu uma oportunidade de reencontro. Ela voltaria pra cidade num feriado. Entrei em contato com seu irmão, combinamos de ele leva-la para conversarmos. Um encontro simples, eu estava muito feliz só com a possibilidade. A hora finalmente chegou. A hora de rever minha amiga. A hora de abrir a caixinha. E num breve imaginar, minhas mãos mentais cavaram minhas memórias, puxaram arquivos, reviraram loucamente até achar a pequena caixa, preservada e pesada. Sem pensar ou hesitar, lançam-se a abri-la.

O tempo para. A onda de choque está bem em minha frente, esperando, me encarando. Caos, puro caos. Não posso respirar. Se eu respirar, o tempo voltará, e a onda me atingirá. Segundos, minutos, dias, meses, anos, eras, não era claro quanto tempo encarei a explosão, mas na primeira inspiração, clamando por ar, cada célula mental sentiu o impacto. 7 anos de sentimentos, de eventos, de memórias, condensadas em um único instante, me acertaram no centro da testa.

“O que é esse sentimento? O que é essa pressão?” Pensava eu, em meio ao furacão. Medo, dor, terror, desejo, vontade, amores frustrados, falhas. No ápice do turbilhão, estico as mãos mentais e fecho a caixa. A energia não aumenta, mas permanece. Isso é amor? Isso é idolatria? Isso é obsessão? Quem é essa garota? Eu não me lembrava. Me lembrava de seu sorriso desdenhoso, seus olhos semicerrados, de seu nome, mas não me lembrava quem ela era. Como ela era. Como nós éramos.

E pelos próximos 5 dias, o universo não fazia sentido. Minha frieza costumeira foi substituída por uma intensidade sentimental nunca antes vista. Ensaiava o encontro considerando mil abordagens, mil respostas, uma centena de trilhas sonoras dramáticas, dezenas de resultados. Imaginava uma paixão ardente, seguida de uma rejeição violenta, apatia seguida de um abraço apertado. Em um loop de pensamentos eu tentava entender o que estava sentindo.

Dia do encontro. Ansiedade generalizada. O tempo não passa. Não durmo naquela noite. Tem algo de errado. Algo que eu estou esquecendo, algo que não considerei. A privação do sono e o monoideísmo somados resultaram em paranoia com minha própria mente. Eu precisava mergulhar em mim. Nesse sentimento. Eu precisava entender o que era. Eu precisava abrir a caixa de novo.

Sentei-me, chorando de desespero existencial, cerrei os olhos, respirei fundo. O trauma da explosão anterior ainda estava lá. As mãos mentais procuravam com hesitação e zelo dessa vez. E lá estava. A incompreensível caixa. Abro com cuidado, e instantaneamente a pressão empurra o sentimentalismo para fora. Caos. Puro e completo caos. Mas eu preciso mergulhar. Mergulhar até o fundo dessa caixa. Entrego minha mente, enfio as mãos, o mais profundo possível. E lá está.

Como a Esperança surgindo para Pandora, surge minha amiga em minha mente. Eu estava esquecendo dela. As memorias com ela. O último elemento da caixinha. E me lembrei. Me lembrei do jeito grosseiro dela, das profundas futilidades que permeavam nossos debates filosóficos, da simplicidade da vida. Ela não era nada das mil possibilidades que eu tinha procurado. Ela era ela. Sempre foi. Ela some de quando em quando, e está tudo bem. Ainda era tudo muito intenso, mas eu entendi. Entendi o que era meu e o que era dela.

E pra encerrar essa enorme piada cósmica, arquitetada pela mais inocente das intenções, o encontro foi cancelado. Ela não pôde vir. E está tudo bem. Minha amiga tem seu tempo, ela some quando precisa, observa quando precisa e, quando menos se espera, faz sua entrada dramática. Eu entendo.

E a caixinha se desfez. Não suportou a força da explosão final. As memórias dos últimos sete anos lentamente decaem, enquanto eu seguro em minhas mãos as lembranças de minha amiga. Essas vão pra caixinha dos amigos, como sempre deveriam ter ido. Talvez eu não tenha fofocas pra contar, ou sentimentos pra compartilhar quando nos encontrarmos, mas eu tenho certeza que ela entenderia.

E em posse das lembranças desbloqueadas pelo evento, observo as cinzas dessa Caixa de Pandora mental, sem saber se estou assustado ou intrigado. Talvez essa seja a memória que eu deva compartilhar com ela quando a encontrar. Tenho certeza que ela riria dessa piada cósmica.

Até um dia, minha amiga.

Ariel Alves
Enviado por Ariel Alves em 08/04/2023
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