Bala de Prata

O ano é 1994. A Nenê e o Ricardo começaram a namorar em fevereiro. Senna morreu no feriado de primeiro de maio. O Brasil ganhou o tetra em julho. Em agosto, o Seu Joaquim, sogro do Ricardo, resolveu que ia trocar de carro.

Tinha um Fusca 74, amarelinho. Trabalhava no SESI do Parque Furquim. Comentou no serviço que tava pensando em vender, pra comprar um Gol 1000, modelo da Copa. Alguém falou que tinha uma professora querendo um fusca. Combinaram de ver o carro no final do dia. Negócio fechado ali mesmo, na garagem do Seu Joaquim.

No sábado, a família inteira partiu pra Copauto pra montar no Gol. O primeiro carro zero a gente nunca esquece. Baita conquista de quem venceu na vida. Mas foi só pisar o pé na concessionária pra história mudar por completo.

Deu de cara com ele. Prata. Lunar. Brilhando igual diamante. Motor de 1.600 cilindradas. Dois carburadores. Vidros verdes. Aquele adesivo fininho, amarelo e preto, ao longo de toda a lateral, logo abaixo das janelas. E mais dois na traseira: um com o nome Fusca, estilizado, outro da Copauto. Rádio VW, de série. O primeiro modelo “Itamar”. Foi amor à primeira vista.

- Pai, a gente veio pra comprar o Gol, lembra?

- Olha o vendedor aí!

Viram o Gol. Entraram no Gol. Experimentaram o Gol. Ouviram todas as maravilhas do Gol, efusivamente detalhadas pelo rapaz, que já tava pondo na conta a comissão pela venda.

- E aquele Fusca, ali?

- Ah, Seu Joaquim, encomenda do Sindicato do Comércio Varejista daqui da cidade.

Aí o Seu Joaquim viu rompido de vez o fiozinho de esperança que vinha alimentando, ali dentro do peito, quietinho, enquanto rolava a apologia do gol.

- Tá vendo, pai? O Fusca já tá vendido! O nosso destino é o Gol...

- O Gol da Copa!

- Bom, pessoal! Não vou mentir pra vocês, não! O Fusca tava encomendado sim, mas é que o sindicato desistiu da compra, justamente porque o preço é o mesmo do Gol. Então, resolveram optar pelo quadradinho.

- Mesmo preço?

- Sim, seu Joaquim, Gol e Fusca tão sendo vendidos pelo mesmo referencial de tabela: R$ 7.900,00 mais R$ 300,00 de ágio (galera mais jovem nem faz ideia do que seja, mas o pessoal que já tava por aqui antes do Plano Real nunca vai esquecer do ágio).

- R$ 8.200,00? Então vou ficar com o redondinho...

E não adiantou argumentar, discutir, protestar, chorar, apelar, suplicar. Seu Joaquim comprou o Fusca Itamar 1994 Prata Lunar 1.600 zero quilômetro mais resplandecente que brilhante rosa.

- Comprou um Fusca?

- Como assim? Não ia comprar um Gol?

- Pagou no Fusca o mesmo valor do Gol?

- Trocou o Gol 1000 da Copa por um Fusca?

- Já pensou que daqui a dez anos o Fusca vai tá valendo muito menos que o Gol?

- Quem gosta de gol é o Romário! Eu gosto de Fusca...

Difícil do pessoal entender. Mas o Seu Joaquim não tava nem aí pro pessoal. Tava era mais que realizado com seu Fusca. E tinha certeza, lá no fundo da alma, que tinha feito um baita negócio.

E o tempo provou que o teimoso tinha acertado em cheio mesmo...

Tá certo que nos primeiros anos era só um Fusca comum. Mas, com o passar do tempo, o carro começou a despertar a atenção do povo.

Quilometragem baixíssima. Seu Joaquim trabalhava no SESI durante o dia e na Faculdade à noite, mas não precisava do carro pra ir pro serviço. Morava a menos de quinhentos metros dos dois locais de trabalho. Ia e voltava a pé.

Usava o Fusca pra ir ao mercado – o Pastorinho da Vila Marcondes, distante não mais do que dois quilômetros – uma vez por semana, toda sexta-feira. E também pra ir cuidar dos seus cultivos no terreno do Itapura, que também não ficava muito mais longe.

Ah, costumava levar a Dona Neuza até o centro, quando ela perdia o ônibus e, uma vez por mês, visitar o posto de combustível pra completar o tanque – só com gasolina aditivada – e calibrar os pneus, checar água e óleo, trocado religiosamente a cada seis meses, independentemente do registro do odômetro.

No fim das contas, o carro rodava, em média, 1.500 quilômetros por ano, equivalente ao que a maioria do pessoal anda por mês!

E os cuidados de banho, então?

Nunca foi lavado com mangueira. Seu Joaquim não precisava mais do que um balde de água pra deixar o Bala de Prata um brinco. Dissolvia meia lata de cera e acrescentava uns 300ml de querosene. Aí era só passar o pano e pronto: mais liso e brilhante impossível!

Pois é, o tempo passou e a máquina ficou preservada, tudo original.

- Até os riscos, tudo nele é original!

Seu Joaquim e suas tiradas...

Falando em riscos, tem um que merece o relato. Mesmo porque é muito mais que um risco. É um legítimo corte no metal.

O Seu Joaquim já tinha acabado o serviço lá no terreninho dele. Arrancou mandioca, plantou tomatinho cereja, capinou o matinho que já tava crescendo de novo no meio das abóboras, deu um talento na cerca, que tava com umas ripas meio que, vencidas...

Tudo em dia, montou no Fusca e acelerou. Não deu nem tempo de desviar. O menino vinha correndo pela rua, na direção contrária, puxando a pipa, dando linha, tentando pegar velocidade pra fazer ela subir.

Justo quando cruzou com o Fusca, o vento bateu lateral e levou o papagaio de encontro ao carro. Por sorte passou direto pela frente do Seu Joaquim, mas a linha ficou esticada por toda a extensão do para-brisa, só não chegou a encostar no vidro porque pegou pra valer mesmo na coluna da lateral direita.

Foi ali que o cerol fez o estrago antes de arrebentar o fio, mas o corte na lata foi fundo. Com o susto, o Seu Joaquim travou. Parou o carro, respirou, desceu pra dar uma bronca no moleque. E aí viu o talho aberto no Bala de Prata.

- Já imaginou se fosse um motoqueiro? Tinha arrancado a cabeça do pescoço...

Chegou em casa acabrunhado.

- O Fusca levou um baita dum corte, mas sou eu que tô sangrando...

E não é que o carrão tem história cabulosa também, daquelas bem no modo “Acredite se quiser”.

É a do temporal que desabou no dia de ano novo. O Fusca tava na rua, na frente da casa do Seu Joaquim, porque veio a família inteira da Dona Neuza pro almoço e precisaram desocupar a garagem pra montar as mesas e acomodar o pessoal.

Quando caiu o dilúvio, o Seu Joaquim ficou desesperado. Pediu pro Ricardo encarar o pé d’água e guardar o carro.

Mas quando o Ricardo girou a chave pra dar partida, o Bala de Prata não deu sinal de vida. Não acendeu nenhuma luz no painel. Nem fez nhem-nhem-nhem...

- Estranha demais essa pane! Não tem nem seis meses que trocou a bateria. E de manhã funcionou normal quando tirei da garagem. Seu Joaquim vai surtar, mas o Fusca vai ter que dormir na rua.

E quando o Ricardo tava fechando o portão, o cachorro passou que nem um raio e foi direto pra dentro de casa pra escapar do toró.

A família acabou adotando o cãozinho, tão meigo e dócil, igualzinho um Tiranossauro Rex, bonsai...

Pra quem ficou curioso, a história do Maike, o bipolar, também tá aqui no site, é só navegar pelos textos e ancorar no “O presente da tempestade" pra conhecer a fera em detalhes.

E qual é a do Fusca nessa?

É que, no dia seguinte, o Seu Joaquim cismou de tentar fazer o carro funcionar. Sentou, girou a chave: e não é que pegou de primeira? E a bateria durou mais quatro anos!

Acabou que o bug elétrico do Fusca foi mero instrumento da conspiração do universo pra dar bom pro Maike arranjar um lar...

E foi a única vez que o Bala de Prata quase deixou o Seu Joaquim na mão...

E, aproveitando que o assunto veio pra quebra, defeito, desgaste e manutenção...

Fusca é Fusca! O carro foi projetado pra guerra, pra aguentar as piores condições e andar nos piores terrenos. Quem tem, sabe bem: não quebra quase nunca e, quando quebra, o conserto é tranquilo.

Um alicate e um pedaço de arame resolvem quase tudo. E, nos casos extremos, quando a gambiarra – não, gambiarra não, que proprietário de Fusca não faz isso! – quando a solução técnica alternativa não resulta exitosa, as peças são as menos caras do mercado. Tanto que vira-e-mexe o que fica mais caro no reparo acaba sendo a mão-de-obra.

E do jeito que o Seu Joaquim cuidava, da forma como dirigia e do tanto que andava, o carro raramente ia pra oficina.

E, quanto mais o tempo passava, mais novo e cobiçado o Bala de Prata ficava.

E os assédios foram ficando cada vez mais frequentes e indecentes.

Não foram poucas as ocasiões em que as pessoas paravam na frente da casa do Seu Joaquim, desciam e batiam palma pra perguntar se o Fusca tava à venda, quanto valia...

E ele, todo pimpão, fazia questão de mostrar o carro, com todos os seus atributos, pra que a pessoa calculasse quanto estaria disposta a pagar. Pra só então declarar com firmeza que não tinha a menor intenção de vender.

E quando o Ricardo inventou de vender o Voyage? Vâmo combinar que já sabia que não seria fácil. Apesar de estar em ótimo estado, único dono, só quatro anos de uso, o carro não tinha ar condicionado, nem direção hidráulica.

Quando as pessoas ligavam, perguntando se era completo, de cara o Ricardo já respondia que lógico que sim!

- Completíssimo! 2010, 1.0, tem motor, chassi, câmbio, bancos, rodas, pneus, volante, vidros, até rádio e antena...

Missão meio que impossível mesmo. E quando, surpreendentemente, alguém se interessava e vinha conferir o Voyage, mudava o foco instantaneamente quando via o Fusca.

- E esse Fusca aí?

- É do Seu Joaquim, meu sogro. Não vende nem a pau! Bora ver o Voyage?

- Chama ele lá, por favor! Dou vinte mil, à vista, nesse Fusca. Se ele fechar, já faço o cheque agora...

- Pelo amor de Deus, Seu Joaquim! Quando vier gente pra ver o Voyage, cobre o Bala de Prata com uma lona ou sai com ele pro mercado ou pro terreno, sei lá pra onde, porque desse jeito não vou conseguir vender nunca o meu.

O Ricardo acabou entregando o Voyage numa garagem, por um valor bem abaixo do que tava pedindo, depois de muita insistência em tentar vender o carro pra particular, com seguidas decepções, proporcionais à teimosia de continuar fazendo um "troncomóvel" concorrer com uma relíquia.

E o sarrafo só que subia.

Um belo dia o Ricardo foi pro trabalho de Fusca - a pedido do Seu Joaquim - pra botar pra andar um pouco, porque carro nenhum aceita o desaforo de ficar encostado.

No fim do expediente, quando voltou pro carro pra ir embora, tinha um bilhete no limpador do para-brisa.

“Nesse Fusca eu pago R$ 25.000,00!”

Era o Pedrinho, do Jurídico. Maníaco por Fusca. Já tinha três, um deles o tão famoso Fuscão Preto, mas não aguentou quando viu o Bala de Prata.

O Ricardo nem falou com o Seu Joaquim. Respondeu pro Pedrinho no Zap, pra deixar registrado.

“Sendo o valor proposto a primeira parcela de três, negócio fechado.”

Aí o Pedrinho arregou, mas uns dois meses depois mandou uma reforçada pra R$ 35.000,00. Vai que cola, né?

O Ricardo só copiou e colou a resposta anterior. Lei da Oferta e Procura, ué...

A real é que o Seu Joaquim e o Ricardo se divertiam com as propostas. Se bem que algumas eram de mexer com as estruturas.

Teve um senhor, no posto de gasolina, que ofereceu o Corolla, praticamente zero, ainda com cheirinho de carro novo, com dois mil quilômetros rodados, em troca do Fusca. Sem volta. Na “oreia”, como a gente costuma dizer aqui no interior. E tava falando sério...

Aquele dia o Seu Joaquim balançou, mas resistiu à tentação! Depois não perdia a chance de ostentar que enjeitou uma nave e não bateu rolo no Fusca.

Até que chegou o dia em que o Seu Joaquim sentou com o Ricardo pra uma conversa séria.

- Rapaz, é o seguinte: eu tô achando que eu já não tô mais tão legal pra dirigir...

- Que é isso, Seu Joaquim! Acabou de renovar a carta! Passou tranquilo pelo exame de vista...

- Ah, mas tô sentindo aqui dentro que já não sou mais o motorista que eu era, sabe? Então, antes de fazer besteira, vou parar. Mas não queria vender o carro. Você toma conta dele pra mim?

- Mas é claro, Seu Joaquim! Vai ser uma honra...

- E pode ficar à vontade pra usar ele, inclusive pra ensinar as meninas a dirigir...

O Seu Joaquim partiu em 2019. A saudade ainda dói forte. E o Ricardo vive pedindo desculpa pra ele, porque não tá cuidando do Bala de Prata como se deve: tá lavando com máquina de pressão, onde já se viu? Uma heresia!

E quando vai abastecer, então.

- Perdão, Seu Joaquim! Mas o preço da gasolina tá tão absurdo, que até o senhor ia pular da aditivada pra comum...

Bom, pelo menos o propósito mais importante continua firme, indiscutível, inarredável!

Dia desses, no sinal vermelho, encostou do lado do Fusca uma caminhonete, daquelas monstro, que dependendo do tamanho da pessoa, chega a precisar de escadinha pra entrar.

O cidadão baixou o vidro e provocou:

- Vale quanto?

- R$ 120.000,00!

- Fala sério! Nunca vai vender!

- Essa é a intenção, amigo! Essa é a intenção...