UM TIRO NO MEIO DA TESTA

Ela estava deslumbrante. Cabelos deixados ao vento, olhos esmagadores, pele de pêssego. Quando entrei no quarto, fui surpreendido por uma beleza agreste e rara. Tudo estava desarrumado. Ferramentas espalhadas pelo chão, restos de pizza e aquele cheiro de incenso já todo consumido. Roupas penduradas em cabides e magistralmente passadas contrastavam com o caos geral. Um quadro na parede chamou a minha atenção. Parecia uma obra renascentista, habilmente concebida, envolta por uma moldura esmeradamente produzida. Me aproximei dela para ver detalhes. Era um casal com vestes de nobreza, na faixa dos trinta e poucos anos. A mulher tinha um bilhete na mão com texto instigante: "Versos são gomos de algo prestes a ser parido. Um engasgo soturno nas andanças do Criador. Quem sabe não passam de querelas mal ungidas de vermute barato e solidão". Pude observar que o homem não tinha um olho. Era bem apessoado e suava muito. De onde será que vieram? Seus sapatos tinham ainda um barro impregnado na sola. Atrás do casal havia um coruja prestes a voar. Ao lado do quadro tinham fotos de família enquadradas, formando um conjunto bonito de se ver. Numa das fotos percebi um velho sentado no chão, parecendo meditar. Em outro, um candelabro. Em outro, uma mesa de jantar posta para 12 pessoas. Em outro, um bando de gaivotas em revoada. Então ela me viu. Num ímpeto, pegou o revólver na gaveta do criado-mudo e desferiu cinco tiros em minha direção, dos quais quatro me atingiram, um deles no meio da testa. Caí na hora e fiquei agonizando por longos minutos até morrer. Ela viu tudo e gargalhava. Como gargalhava. Então levantou da cama, sacudiu a cabeça e saiu do quarto como se nada tivesse acontecido.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 02/04/2023
Código do texto: T7754389
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