PERDÃO, NÃO CONSIGO ESCREVER UM ROMANCE.

 

            Vi minha crônica publicada no jornal, impresso e não eletrônico, e, embaixo de uma pequena fotografia, estava escrito: “advogado e escritor”.

            Quase não acreditei que fui chamado de escritor. É que passei minha vida pensando em ser um escritor. Se, realmente, eu sou um escritor, posso afirmar, com toda a convicção, que sou um escritor tardio e, de certa forma, medíocre, por navegar ainda no mundo das crônicas.

            Imagino que os leitores possam criar uma hierarquia de escritores, começando com os cronistas, depois os contistas e, finalmente, os romancistas. Os poetas, é lógico, estão à parte disso tudo, porque os poetas são de outros mundos, vivem em outras civilizações, não podem ser mensurados ou catalogados.

            Digo que sou medíocre porque me vi incapaz de conceber e escrever um romance. Um romance é grande, cheio de personagens, todos fictícios, porém, já vistos pelo romancista na vida real. Um romance que se preze descreve e desnuda a alma humana, os sentimentos e, dentre eles, especialmente, a loucura.

            Então, desde a adolescência, desejando ser um escritor, eu me perguntava: devo inventar uma estória escabrosa, ao menos alguma coisa tem que ser assim? Como fez Kafka no "O processo". Um crime? É, um crime, patrocinando a teoria do personagem Raskolnikov, do "Crime e Castigo", de Dostoievisk. Talvez, um desvio psicológico, ou uma estupidez, algum radicalismo.

            Passei a meditar nas escabrosidades e nas coisas estranhas, observando as maldades e as bondades e, quando achava algo nesse sentido, acreditava estar pronto para escrever o romance e, aí sim, ser chamado de escritor.

            O problema é que eu nunca acho algo efetivamente mal e escabroso que tenha significado literário, porque eu sempre chego atrás da vida, da realidade, do cotidiano. Os fatos e as manchetes dos jornais sempre me atropelam.

            Quando era menino sonhava com justiça e igualdade, acreditava na política como um meio de transformação, mas logo fui surpreendido com a tortura dos militares e a insana ingenuidade dos chamados "subversivos".

            Depois veio a decepção com a política e os políticos, porque, a cada ano que passa, eles inventam alguma coisa a mais, uma corrupção a mais, uma mentira a mais, uma desfaçatez a mais. Roubam tanto que já lhes perdoei.

        Roubam quantias que não saberão como gastar em cinco vidas nababescas. Então, roubam para os filhos, os netos, os bisnetos, os trinetos e os tataranetos. Se assim roubam, e o ditado diz que "vergonha é roubar e não saber como levar", é porque são loucos, necessitam de tratamento urgente, medicamentoso e com anos de análise, e nem isso dará certo, porque a loucura é coisa de gente honesta e, eles, na verdade, não são loucos, eles são é maus e covardes. Por isso, digo novamente, até já os perdoei, porque se tornaram desprezíveis e irrelevantes como seres humanos, já não pertencem a essa espécie.

            Os que não roubam trafegam pelo radicalismo e despertam ódios entre os cidadãos desta República que não sabe bem o significado de res publica.

            É bem verdade, há muitos honestos e equilibrados, mas estes vivem cercados da maldade e sabem de coisas que não podem contar. Portanto, de certa forma e ainda que involuntariamente, são cúmplices do sistema. Estes políticos não permanecem na vida pública, sendo mais sensato voltar às trivialidades do mundo dos comuns do que viver na angústia da sujeira.

            Não consigo escrever um romance sobre política.

            Então, um romance sobre as loucuras, a devassidão, as mudanças nos costumes morais. A mesma coisa, a cada primeiro de janeiro ouço novidades que não poderiam ser imaginadas nos anos sessenta, nem nos setenta, enfim, em todos os anos nos quais desejei ser escritor.

            E os crimes? Seria mais fácil, já que atuo na área penal como advogado. Os crimes são piores, estão literalmente contaminados por loucura humana inimaginável. A cada ano são mais inexplicáveis. Já não se mata por motivos justos ou ponderáveis, quem sabe ciúmes, uma traição, uma vingança. Hoje os homicidas, cada vez mais precoces, matam, por assim dizer, “para ver o tombo”.

            Como eu poderia imaginar, para escrever um romance sádico, que dois jovens, uma mãe e seu namorado, seriam capazes de estuprar e matar uma bebê de dois anos? Como imaginar que um aluno de treze anos entraria numa sala de aula para matar a facadas sua professora de setenta anos?

            Desculpe, leitor, mas definitivamente não conseguirei escrever meu romance. Toda a minha imaginação não antecipa a realidade. Por mais que eu invente maldades e crueldades para escrever o tal romance, na publicação do livro todo o seu tema já estará superado pelo cotidiano do nosso tempo, na violência, na loucura, na desfaçatez, na desumanidade.

            Por isso, não passarei de um cronista, porque para ser cronista e também contista e romancista, só os grandes de outros tempos, como um Machado de Assis. O cronista não imagina, só conta, com outros olhares, o que acontece hoje.