Crônicas Médicas - Seja riso
Como fazer alguém dar risada quando sequer consigo colocar um sorriso de verdade em meu próprio rosto? Essa foi a pergunta que me fiz no início da tarde desse dia vinte e nove de março, antes da ação da Liga Acadêmica do Riso e da Saúde na AACC/MS.
Fazia um dia cansativo. Não havia dormido bem na noite anterior e precisei levantar mais cedo que o comum em uma quarta-feira para fazer prova do módulo que menos me agrada na faculdade. Ainda, para piorar meu humor, questões pessoais invadiam minha mente como sanguessugas, drenando o pouco de energia que me restava.
Bem, eu não tinha muita escapatória. Já tinha assumido o compromisso e não podia dar para trás naquele momento. Foi então que me recordei do curso de palhaçaria que havíamos feito. Não sei exatamente como a frase foi dita, mas lembro a mensagem que ficou: ao colocar o nariz de palhaço, não somos mais nós mesmos; passamos a ser, em vez disso, quem o outro precisa que sejamos. Era, portanto, hora de colocar o nariz e deixar os meus problemas para trás. Entrei no carro e parti.
O local da ação não era distante, mas os minutos se demoravam naquele silêncio mórbido que preenchia o carro e ocupava minha cabeça de vazio. O trânsito me estressava, o vermelho dos semáforos me perseguia e o caminho se fazia cada vez mais truncado. Era como se, a cada sinal fechado, eu tivesse uma nova oportunidade para mudar minha cara, abrir um sorriso e melhorar meu humor, mas minha mente se encontrava muito nebulosa.
Estacionei o carro, peguei a câmera fotográfica, o violão e o jaleco, e me encontrei com o restante do grupo que também chegava naquele momento. “Que cara é essa?”, perguntou uma das minhas amigas que havia ido. “Sono”, não menti, mas tampouco disse o principal motivo.
Juntos, caminhamos para a entrada e, já trajados de palhaços, adentramos a instituição. A cada “oi” vigoroso que eu dava para os funcionários dali, a névoa em minha mente se dissipava um pouco. Quando me dei conta, já estávamos no pátio central, onde as crianças em tratamento contra o câncer se concentravam para as principais atividades do dia-a-dia. Algumas mães sentavam-se pouco à frente de onde estávamos, produzindo pinturas terapêuticas (algumas bastante artísticas). Um tanto mais adiante, de uma sala à direita, dois garotos curiosos pendiam a cabeça pela porta e acenavam, com visível alegria no rosto. “Palhaços! Palhaços!”, animou-se um deles, aquele que mudaria meu dia. Ao final do pátio, onde se localizava a brinquedoteca, garotinhas com 2, 3 ou 4 anos (não sei dizer ao certo), também assistiam nossa chegada, um tanto receosas.
Depois de fazermos um tour por toda a instituição, retornamos para o pátio e começamos a nos enturmar. Minha cabeça já não se lembrava dos meus próprios problemas, questões tão menores do que as daquelas crianças.
Na sala onde os dois garotos se encontravam acontecia a aula semanal de violão. Um professor tentava ensinar uns poucos acordes e uma batida aos dois adolescentes, um tanto desengonçados no manejo do instrumento. Peguei meu próprio violão e me juntei a eles.
Ali, enquanto a aula acontecia, pude fazer algumas brincadeiras e conversar por vários minutos com um dos garotos, João, sobre sua vida fora da AACC. Contava uma história simples, talvez parecida com a de vários outros Joões por aí, mas com um sorriso no rosto que só ele tinha. Contou-me sobre seus pais e sua casa, sobre como ajudava sua família na plantação e nos outros serviços domésticos, sobre as frutas que cultivava e que comia, sobre como tocar violino, sobre sua ida, próxima, para São Paulo, para se consultar a respeito da doação de medula.
Quanto mais o João falava, mais sua felicidade me contagiava. Era um garoto de 13 anos, lutando há não sei quanto tempo contra leucemia, longe de casa e de sua rotina, mas, ainda assim, feliz. Seu sorriso, de orelha a orelha, não tinha razão senão a pura alegria de ser feliz. Então por que devia eu fechar a cara por conta de uma noite mal dormida, uma prova da faculdade e outras questões que em algum momento se resolveriam?
Naquele momento, os sorrisos que eu retribuía para João e para os demais ali em volta já não eram somente por conta do nariz de palhaço. Eram, de fato, sorrisos sinceros que o João havia me ensinado a distribuir. Com esse novo aprendizado, o restante da ação se tornou muito mais leve. Cantei, tirei fotos, conversei e fui feliz.
Saí de casa para levar ao próximo o riso que eu mesmo não possuía. Voltei com uma dura lição de vida e a lembrança de um dos sorrisos mais marcantes que cruzaram meu caminho. Não sei se me encontrarei algum dia novamente com João, mas a memória do que ele me ensinou não vai deixar minha cabeça tão cedo. Que algum dia, assim como esse garoto foi para mim, eu possa realmente ser riso para quem se esqueceu de como sorrir.