Divindades & humanidades

Por azar, Celina foi concebida e criada em um bordel de terceira classe, quiçá, quarta categoria. Deus fez o prodígio dela crescer com bons modos e sincera galhardia em ambiente tão hostil para os princípios e honradez. A má sorte ou contingência a tornou habilitada rameira, uma “perdida” sempre encontrada na listagem de preferências dos melhores fregueses da casa, roçado onde lavrou por mais de trinta anos. Peito batido, corpo maltratado, a senilidade bateu à porta do seu quartinho e a transformou em uma ex-mundana. Deus deu coragem e força para trabalhar, lavando e engomando roupas de famílias, enquanto o Diabo a consumia por dentro, fazendo chegar às suas faces pálidas a vergonha e agonia da vida pregressa, junto com a ulceração das doenças infecciosas sexualmente transmissíveis.

“Ela não é como as outras”, assegurava dona Santinha, uma “nova seita” cliente de Celina. “Trabalha muito bem, é cuidadosa, respeitadora e de boas maneiras”. Deus lhe concedeu a graça da simpatia. Com isso veio a amizade e apreço da comunidade, normalmente avessa às mulheres “da vida”, mesmo que aposentadas. O anjo mau das trevas piorou sua vidinha já precária, fazendo-a tísica, tossindo seco, escondida pelos cantos das paredes. Descoberta a tuberculose, o vento frio da escassez, as privações as levaram para as ruas, pedinte a engrossar a mendicância das sextas-feiras. Numa dessas sextas-feiras de miséria, deu de cara com o anjo bom enviado por Deus para lhe ajudar. “Estás desprotegida e perturbada? Rogai a Deus, porque ele venceu o Diabo e não há quem resista ao nome do Todo Poderoso”. Celina foi abrigada na igreja do “Seu Veríssimo”, um homem de fé que mantinha bodega no centro do baixo meretrício e era amigo de todas as putas e cafetões, bêbados, meliantes e marginais em geral. “Seu Veríssimo” foi expulso da Igreja Batista por apostasia. Afastou-se dos princípios do Evangelho do pastor, foi excluído do rol dos fiéis sob a acusação de manter comércio e estabelecer simpatia e querença com pecadores irrecuperáveis. Na igreja do “Seu Veríssimo”, Celina meteu na cabeça que Deus gostava dela e, por tabela, o mundo desculpava suas faltas.

No seu posto de comando, o Belzebu considerou ser a hora de mostrar a Celina seu fadário cruel. Foi acusada de ter roubado um relógio de ouro pendurado na parede do rico negociante. Presa e devidamente torturada por cinco dias, Celina sobreviveu para saber que o tal relógio havia caído por trás de um baú. Encontrado o relógio, Celina agradeceu ao Redentor e fez a oração do Salmo 91 para se proteger das forças malignas. “Nenhum mal te sucederá, praga nenhuma chegará à tua tenda”, garante o salmista. Menos de um ano depois, por capricho da sorte e descuido de Deus, o Malvado tirou de Celina sua fé cristã. Passou a coabitar no antro satânico da Umbanda, conforme o pastor. Ela não era como as outras. A religião, entenda-se. Assim sentiu Celina, vivenciando os três conceitos fundamentais da sua nova crença: Luz, Caridade e Amor. A palavra "umbanda" pertence ao vocabulário quimbundo, de Angola, e quer dizer "arte de curar". De fato, Celina curou a dor no peito e a tortura da alma. Um halo luminoso vindo das savanas da África junto com o Candomblé, para o amálgama maravilhoso das etnias, tribos, hábitos, condutas, rituais e crenças.

Provavelmente o Tinhoso levou Celina, estrategicamente, a se embriagar com o poder e toda corrupção advinda, levando a ex-meretriz ao posto de conselheira religiosa, dentro da hierarquia do terreiro de raiz matriarcal, formada exclusivamente por mulheres. E viu Deus que era bom e livrou Celina dos vícios da autoridade. O fogo que sai pela boca de Xangô incendiou os resquícios de vaidade e destruiu as cidadelas do rancor da neófita, para glória dos Orixás.

Preta, ex-puta e xangozeira, Celina teve decretado seu apartheid integral na comunidade. Ela foi consagrada Obá, uma espécie de representação da Ialorixá junto à sociedade. No tempo que os cultos afro-brasileiros eram perseguidos pela polícia, seus adeptos violentados e objetos de culto apreendidos, cabia ao Obá pedir autorização à polícia para manter o terreiro. Quis Deus que Celina batesse de frente com o delegado que a torturou. Com uma pontada no coração, ela encarou o comissário e viu nos seus olhos o brilho assustador de Exu Sete Portas. Entendeu, enfim, que essa divindade do panteão iorubá não era boa nem má e ela sorriu e também chorou um pranto de humanidade que selou a paz e fez-se nítida a graça dos deuses. E viu Deus que era bom.

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 28/03/2023
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