Esses bem-aventurados
O quadro dos estados humanos provoca a dúvida ou a interrogação quanto a ser o nosso mundo local paradisíaco destinado a acolher Almas do seio de Deus, cansadas de contemplação às belezas monótonas de Lá.
Abarrotam-se os nosocômios recepcionando a milhares acometidos de algum mal orgânico.
A coincidência dos estados suscita a solidariedade ou a consolação.
Quantas vezes emerge a imagem revelada quando se deparam com a situação alheia bem mais precária do que a própria!
Muitos males orgânicos, na classificação etiológica, tornam-se procuradores da vida de muitos.
O conceito de vida transcende; não há uniformidade no seu significado, é um vocábulo polissêmico criado pela diversidade dos caprichos humanos. Um poeta da música considerou-a, transcrevendo-a concordando com as crianças: “a vida é bonita, e para ênfase e ponto, “é bonita e é bonita.”
A reencarnação, excluída do processo de entendimento da dinâmica da justiça divina, revoga este atributo do Criador, de ser justo, embora severamente amoroso, e abre a lacuna para que a sorte ou acaso dêem conta, justificando ou explicando, de tantas desigualdades por vezes congênitas.
O fato é que, a motivação e o que signifique viver não são exatamente iguais para todos.
Ao homem robusto, no pleno gozo de saúde, viver é ter poder socioeconômico para desfrutar do melhor que haja atualmente como oferta de consumo; é estar exercendo os seus misteres ocupacionais, fruto de escolha vocacional sem contrariedade entre o fazer e o gostar; é ter a companhia de entes familiares correspondendo às expectativas de caminho no bem, quando se tem prole, de carinho e amor de cônjuge; ter seu passaporte em dia e item assinalado no orçamento as férias programadas, lazer imprescindível na companhia de toda a família. Viver, para eles, é isto.
Àquela mãe solteira, no entanto, viver é amar e amar é viver em função de seu filho paralítico e com déficit mental, absolutamente carente de seus cuidados. São para ele dias úteis, feriados e finais de semana.
Quem ouse defendê-la no lamento de sua sorte, apiedando-se ou menosprezando a sua competência em gerir, na solução do amor materno, a situação-problema que a vida lhes impôs?!
O que aos olhos soberbos se lhes pareça pieguice, é sonho de vida a felicitar, se realizado, o caro patrício, simples e humilde, que por usucapião, faz jus àquele terreninho de modesta dimensão, que há de ser alicerçado, tijolo a tijolo, para vir a ser quarto, sala, banheiro e cozinha na definição de casa, e mais que isto, lar edificado a promoção do amor, este dom de que são legatários todos os homens!
Muitos males orgânicos reestruturam admiravelmente a estadia de seus portadores, sobretudo quando imunes à reação dos cuidados da medicina ora tão rica de recursos de modo a (tentar) debelá-los.
Viver é um direito do qual poucos renunciam, dentre os quais, seguramente, os que se quedem ao autocídio.
Sendo possível adiar a sua perda em um dia, uma hora, um segundo, o homem abraça essa possibilidade.
Acintosa hipérbole de modo a aduzir a luta heróica por este adiamento, por esta moratória, esta negociação.
O efeito psicológico do conhecimento de uma certeza que advirá, adquire maior tonicidade diante da possibilidade imediata de ocorrência.
Até que ponto, saber o tempo exato de retorno ao mundo dos Espíritos é bom – ou ruim? Que efeitos nos causariam: paranóia, tristeza, preparo, cuidado?
Alguns males orgânicos são verdadeiros pré-anúncios de cuja fatalidade é impossível evadir-se, evitando-os.
Os que amam a vida não se deixam abater. Até certo ponto conseguem atinar o sentido da vida, e sem prodigalidade, aproveitam a essência, o supra-sumo do viver, dando qualidade à própria existência.
O controle de uma moléstia orgânica incurável com auxilio do que se disponha como suporte, é uma atitude que denuncia o apreço inestimável que se tem pela vida.
Faz-se de um tempo exíguo uma eternidade, quando a moléstia dita e impõe estimativa de sobrevida inapelavelmente.
Quantos desejos belos, atos indeléveis, serão realizados sob a contemporização da morte, tendo por mensageiro fiel um mal orgânico?!
As associações com vistas à solidariedade recíproca, à convivência e aceitação facilitada de um acometimento que não selecione ou privilegie cor, credo, partido, estratificação social, são fundadas, estabelecidas sob inspiração daquela fatalidade pré-anunciada.
Imposta a readaptação, muita coisa pode ser e é vivida sem excluir entusiasmo, religiosidade, otimismo, concelebrações ligths que servem de lenitivo contra a amargura, a mágoa do destino desigual conforme a expectativa ou ao que se espera – saúde e longevidade.
Todavia, o lenço da consolação enxuga a tristeza ou as lágrimas precipites da inconformação ao sabor da revolta, quando se tem o fio da espiritualidade a que se saia dos dédalos da incompreensão, percebendo a continuidade da vida – sem solução ou termo no evento da desencarnação.
Antes empeço à fruição, nem sempre digna e proveitosa da vida, ora os males orgânicos referidos adquirem novo ou real significado (na vida) dos que dele têm sido alvo, se lhes constituindo uma bênção dos céus, na equivalência de bem-aventurados, citados no sermão do monte pelo Cristo.
Com efeito, quantas trajetórias são radicalmente mudadas e retificadas para o caminho da salvação de tantos Espíritos encarnados, a partir de um evento aparentemente castrador de seus ideais, respeitado o livre arbítrio, mas que em nada aditariam ao seu patrimônio espiritual ou real...
Assim, no silêncio, desprezo, desagrado e discordância da concepção superficial e materialista da vida, são de serventia valiosíssima a sida, a neoplasia de natureza maligna, o mal de Hansen e outras doenças crônicas em estágios avançados, que favorecem a reeducação de seus portadores, afinal premiados, quando resignados, sem laivo de revolta, porquanto seguramente preparados paulatinamente por médicos e paramédicos no limiar dos dois mundos, de modo a (re)ingressá-los à vida espírita sem as perturbações, o menor dos episódios, ou mesmo os estados de loucura, perplexidade, medo ou vergonha por atos de culpa ou prevaricação, de que ficariam suscetíveis, como milhares de encarnados, sem a benção da dor, amargo elixir curativo, surpreendente em seus caminhos.