O FUNDO DA AGULHA

ValRangel

A camisa estava em boas condições o que faltava era somente pregar um botão, foi até a pequena caixa de costura, demonstrando ter bastante habilidade, pegou tesoura, linha, botão e aquela minúscula agulha, pôs tudo ali numa mesa da sala, e após algumas tentativas infrutíferas de colocar a linha no fundo daquela agulha pontiaguda o seu pensamento relembra fatos que já povoaram a sua existência.

Lembra como a sua mãe cuidava de sua roupa, e ele por mais pura ignorância não agradecia aquele cuidado excessivo, revestido de um zelo materno inigualável, suas camisas recebiam um tratamento especial, eram lavadas secadas a sombra e algumas recebiam um banho de goma, e em seguida, eram passadas, apresentavam uma elegância impecável, dignas dos maiores elogios.

E assim ele insistia, lambia a ponta da linha, segurava a agulha pela ponta fina, e ia fazendo alguns movimentos circulares, para que a linha penetrasse no fundo minúscula dela.

Contorcia as suas mãos em movimentos acelerados, como só os mágicos conseguem fazer, e sentia uma dor fina na munheca, e nada dava certo, apertava os óculos contra o rosto, outras vezes retirava os óculos, e assim cada vez mais, ia se irritando e pensando laconicamente, nas coisas que já passaram em sua vida, longe dele, imaginar, que um dia estaria naquela situação.

Sentado numa cadeira, uma camisa sobre a mesa, e ao seu lado os apetrechos de costura, carretel de linha, tesoura, botão, e a maldita agulha, que recusava receber no seu fundo, aquela fina linha branca.

E reclamando sozinho, se maldizia da vida, falava do desinteresse de sua esposa, e ao mesmo tempo, sabia que ela estava em pé de guerra com ele, devido a problemas tolos, que rondam a vida de um casal.

A sua mente estava atordoada, mas, via quanto à esposa era importante na sua vida, afinal, se ela estivesse ali naquele momento, ele não estaria passando por aquele terrível vexame.

Cruzava as pernas, descruzava, no momento seguinte fazia outras mil piruetas e nada.

Não nascera sem duvida alguma, para a profissão de costureiro, mas, a necessidade daquele momento, lhe exigia ser um alfaiate.

Aquela batalha, de linha, botão, camisa, tesoura, já durava uma eternidade, olhava para o relógio, já estava quase chegando a hora de sair, para um compromisso e nada conseguia.

Os pensamentos lhe voltavam ao passado mergulhou naquele provérbio bíblico, de que era mais fácil, o camelo passar no fundo de uma agulha, do que um rico avarento salvar-se!

E meditou que esse provérbio, devia ser alterado, dizendo que, é mais fácil um camelo passar no fundo de uma agulha, do que a sua linha passar, no fundo dela.

Ria em silêncio, reclamava consigo mesmo, lamentando a sua falta de habilidade.

Olhando novamente para o relógio verifica que a hora corria na velocidade da luz, agora o telefone tocava, o que lhe irritou mais ainda, teve que sair para atendê-lo, e aquela bendita agulha escapuliu de suas tremulas mãos, e caiu naquele piso meio amarelado pelo tempo, agora seria fogo, teria que procurar por ela agachado, e assim fez. Novamente as lembranças chegarem até ele, se viu com alguns meses de vida, quando engatinhava por aquela sala, e saia a derrubar os apetrechos de costura de sua mãe.

A essa altura, o seu compromisso já estava pra lá de atrasado, e engatinha dali, engatinha daqui, finalmente encontrou a agulha, já bastante nervoso mesmo, tomou uma sábia decisão, abriu a pequena caixa de costura, e dentro dela colocou a tesoura o carretel de linha, o botão e aquela maldita agulha.

Foi uma atitude bastante lúcida, tomada por ele, correu para o seu quarto, e resolveu vestir outra camisa, retirou da ombreira uma camisa de listas, e saiu por aí!