Manhã de Natal
 
Toda noite de Natal era igual. Minha doce mãe, de origem européia, atrás dos olhos azuis mais lindos 
que a natureza já produziu, ditava:
- Vocês têm que comer 25 coisas nessa ceia.
Eu não vou passar o dia todo esquentando a barriga no fogão pra vocês agora ficarem com frescura.
Era realmente a mais deliciosa bronca que levávamos.
Minha cidade nas noites de Natal é tão quente, tão quente, que as galinhas põem ovos já cozidos. Algumas mais ansiosas deixam-no quebrar, pois já estavam fritos.
As espigas de milho de pipoca, raramente conseguíamos colher.
O calor é tão intenso que já pegávamos as pipocas estaladas no chão.
Aquela ditadura matriarcal, era angelical perto da outra que tinha havido em 31 de março do mesmo ano.
Na mesa tinha entre outras comidinhas light, peru, torresmo, pururuca, pudim de leite condensado, pão-de-ló, montecao(*), pernil de porco assado, macarrão feito a mão, cruscki(**), e muitas castanhas, avelãs, enfim, um banquete de engorda.
Ai de nós, se não comêssemos as 25 coisas postas à mesa.
Os jovens da cidade tinham por hábito, se encontrar nas manhãs de sábado na praça da igreja matriz. Era o footing matinal, o encontro dos amigos para discutir presentes e amores.
Eu tinha ganhado uma camisa amarela, ban-tan, volta ao mundo. Coisa linda, amarela, de um tecido tão difícil de destruir que camisas assim, usando 7 dias por semana...durava no mínimo 5 anos.
Minha mãe tinha mania de comprar tudo maior. Era pra aproveitar que o filho estava crescendo e não podia perder, então o sapato era dois números maior, a camisa 4 números maior e a calça nem se fala. A previsão de barriga era segura. A pobreza era linda.
Vesti a camisa amarela, uma calça Topeka verde musgo, coloquei o calção azul, isso porque no interior, e aos sábados podia rolar um rio pra nadar, ou um futebol à tarde e o calção já no corpo facilitava tudo.
Não me esqueci de colocar também minha sandália havaiana. Era moda.
Comecei adescer a rua principal e, no interior, de cada 4 pessoas que passam, 5 dão “oi”, olá, etc. 
Era um festival de cumprimentos.
Nem bem andei uns 5 quarteirões, senti uma aguaceira na boca, uns calafrios, uns sons estranhos na barriga.
Lembrei da comilança da noite e pensei comigo: - são gases.
Caminhei mais um pouco e senti que no intestino tinha uma escola de samba, com mulatas, tambores, apitos, cuíca e o pior, vez ou outra, umas dores.
Olhei para um lado, para o outro, ninguém próximo, resolvi dar uma aliviada nos gases.
Foi uma avalanche morro abaixo.
Tremi de medo. A cidade toda iria saber. Amigos, as moças, todos me crucificariam eternamente.
Encostei-me ao muro de uma loja de discos. Tocava jingle Bell em ritmo de rock. Disfarcei.
Os “óis” já saiam tímidos, mal-humorados, de pouca conversa.
Não queria que ninguém parasse ali comigo. Aos mais insistentes eu pedia pra ficar só, porque estava esperando uma namoradinha pra lá de tímida.
Acho que meia hora durou essa luta. Comecei a ser vencido, quando senti que mesmo tirando a camisa fora da calça, dava pra ver o sinal daquele tsunami intestinal descendo pernas abaixo.
Moscas verdes enormes rodeavam.
Criei coragem e fui passo a passo sem descolar a bunda do muro.
Acho que andei uns 100 metros. Eu deixava uma marca indelével no muro e no ar.
Levanto a cabeça e reassumo minha dignidade cagada.
Olho rua abaixo e vejo que subia a minha futura sogra.
Ela já não me aceitava pela má fama. Chegou perto, torceu o nariz,
Fixou-me nos olhos e foi direta:
- Você acha que vou deixar minha filha, linda, usando perfumes franceses, namorar um rapaz que fica horas colado no muro, em frente a essa fossa vazando? E rodeado de moscas?
Deu de costas, abriu a sombrinha florida, e nem disse adeus.
Comemorei...
Já que estava borrado mesmo, ofendido pela ex-quase-futura-talvez-sogra... encarei a vida e fui pra casa cumprimentando todos que via...
feliz natal...feliz natal...feliz natal!!!

(*)  http://www.forums.supertoinette.com/recettes_6595.html
(**)
http://www.cookaround.com/yabbse1/showthread.php?t=57732
Augusto Servano Rodrigues
Enviado por Augusto Servano Rodrigues em 12/12/2007
Reeditado em 12/12/2007
Código do texto: T774964
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.