O ADVOGADO DO MARCA-TEXTO

 

     Em 1982 eu era um jovem promotor de justiça, atuando solitariamente em uma cidade do interior sul-mato-grossense. Tempos de dificuldades, não havia internet, não havia uma livraria sequer, não havia televisão e a única emissora de rádio local era extremamente limitada, não havia banca de jornal. Ainda assim, eu era razoavelmente bem informado com meu rádio de nove faixas, com um caderninho com anotações para localizar as emissoras mundiais: BBC de Londres, Paz e Progresso de Moscou, Marti, Farabundo Marti, algumas rádios europeias que transmitiam em português.

     Os livros de Direito eram adquiridos de livreiros que ali passavam e os de literatura eu os obtinha pelo Círculo do Livro, recebendo catálogos mensalmente pelo correio.

     O gabinete da Promotoria não era equipado com ar condicionado, computador nem existia (era quase uma ficção científica), a coisa era feita toda em máquinas de escrever.

     Telefonemas para a capital eram feitos no Posto Telefônico, onde duas ou três moças completavam a ligação e o usuário entrava em uma cabine, que não impedia que todos os que estavam no posto ouvissem o teor da conversa.

     À época, telefones eram comprados em dólar, coisa de três mil mais ou menos, no câmbio de hoje cerca de quinze mil reais

     A audiência estava marcada para o final da tarde. Tratava-se de um processo-crime por dano causado ao Posto Telefônico. É que o réu adentrou naquele local sagrado e quebrou tudo o que viu na frente. Uma das telefonistas, moça loirinha sem defeitos físicos, porém, com alguns morais, havia traído o amante casado, o que originou o processo.

     Ao aproximar-se o horário, chega ao Fórum o imponente advogado, o réu era rico. O causídico envergava um impecável terno azul marinho, camisa branca com gravata azul, carregando uma belíssima pasta de couro. Rapaz, como eu sonhava em ter uma pasta de couro daquelas e que viesse com o terno azul marinho, uma camisa branca e gravata azul. 

     De passagem, saí do prédio, nem sei para que, e lá estava: um comodoro azul escuro, o carrão da Chevrolet inatingível para um humilde membro do parquet, mal remunerado.

     Tremi nas bases. Não estava convenientemente preparado para a audiência. Certamente um advogado com terno azul marinho, camisa branca e gravata azul, dono de um Comodoro azul escuro e de uma pasta de couro lindíssima, ia me trucidar. Era demais, não poderia fazer feio.

     Corri para o gabinete e baixei os livros que se encontravam numa estante de aço. Direito Penal, crime de dano. Lá vieram em meu socorro o Magalhães Noronha e outros notáveis doutrinadores.

     Entramos na audiência. Sentados à mesa, eu com meus apontamentos em uma folha de papel sulfite, caneta bic não mão, fiquei abismado. O eminente e soberbo mestre das letras jurídicas tirou da pasta de couro uma capinha transparente de plástico, com papéis coloridos e suas anotações. Ainda não havia visto tais objetos e, pasmei, o patrono do réu saca uma espécie de caneta, toda amarela.

     Fiquei olhando. Para que serviria aquilo? Pela primeira vez me passou pela cabeça que o defensor poderia, de repente, ser dono de uma papelaria. Mas e o Comodoro, e o terno azul marinho com a gravata lustrosa? Esses bens não davam em papelaria, a árvore era outra.

     Tip... ele tirou a tampa da caneta e vagarosamente passou a grifar palavras nas cópias de depoimentos do processo. Que coisa estranha e maravilhosa, era uma caneta marca-texto. Nunca havia visto um bicho daqueles, grifava e ficava legível, tudo amarelinho.

     Não havia dúvida, no momento das alegações finais, quando aquele advogado abrisse a boca, daria um show de conhecimento jurídico, de lógica na apreciação dos fatos, seria um massacre contra o humilde membro do Ministério Público.

     Chegou minha vez. Ditei para o escrevente as razões finais do órgão acusador. Falei sobre o crime de dano e o que dizia o Magalhães Noronha, pedi a condenação do réu.

     O patrono do réu, mais uma vez, abre a inimaginável pasta de couro, retira três folhinhas datilografadas e diz ao Juiz:

     - Doutor, requeiro a juntada das alegações finais. Cadê o brilho e a aula de direito?

     A seguir o Juiz deu a sentença: réu condenado pelo crime de dano, aplicando-lhe a pena.

     Levantamos e o advogado foi embora no Comodoro azul, com seu terno azul marinho, camisa branca, gravata azul, a pasta de couro, suas folhas coloridas e a caneta marca-texto.

     Pensei: quando for a Campo Grande ainda compro uma caneta dessas!