NINGUÉM ME FAZ AMOR TÃO BEM

 

 

 

“E eu já tentei

Outro encontrar

 

Ninguém me faz amor tão bem

Do jeito que você faz

Você é o melhor”

 

Minha esposa foi visitar sua mãe neste sábado, logo após o término da aula no curso de inglês. Fazia um tempo que elas não se viam, e confesso que me perdi entre esses dias, como alguém que está sempre se questionando a hora e tentando adivinhar o dia a fim de saber se deve ou não pôr o lixo para fora. Com isso, avisei aos meus pais que iria almoçar com eles hoje, pois também não queria ficar apenas com a companhia de nossos gatos. Ao receber a notícia por mensagem de texto, meu pai resolveu fritar um peixe para o almoço de hoje, acreditando que sua nora também iria para o almoço. Eu respondi que só eu quem iria. Coloquei ração nos potes pros gatos e tomei conta para que um não comesse da comida do outro. Há um mês eu e minha esposa pegamos um filhotinho, e com três meses de vida o sujeitinho felino de pelos pretos já atentava a nossa paz juntamente com a de nossa gata mais velha. Todavia, com os animais devidamente alimentados e descansando o pós-refeição, tratei-me de cuidar da minha fome.

     O peixe frito estava uma delícia, conforme o propagado pelo cozinheiro da casa.

     “Vai um tomate aí?” meu pai perguntou rindo, mas com a esperança que eu poderia repentinamente gostar da hortaliça.

     “A esposa dele quem ama,” minha mãe respondeu.

     Terminada a refeição, me levantei para lavar a louça. Meu pai então se retirou da cozinha. O vi entrar no banheiro, pegar uma camiseta e sair de casa. Assim que terminei o que estava fazendo, minha mãe ergueu uma de suas mãos para mim; para chamar minha atenção, como quem lembra de algo há muito tempo esquecido devido a um lampejo de qualquer palavra lida no celular em suas mãos.

     “Eu te contei da Neusa?” ela me perguntou e em seguida tampou a boca com mão que ergueu, e com seus olhos espantados atrás do óculos.

     “Não. O que aconteceu?”

     “Senta aí que vem coisa boa.”

     Voltei à mesa, ao mesmo lugar que estava quando ainda almoçava.

     “Você sabe que ela tem mania de perseguição, né?”

     “Assim como todo crente, você sabe,” eu respondi sem surpresa.

     “Pois é, menino. Mas acontece é que ela é meio tam-tam da cabeça mesmo!”

     Eu sorri, mas com uma certa nuvem dúbia em minha cabeça.

     “E você não sabe da última!”

     “Então me conta.”

     “Você lembra que eu te contei que ela acha que toda mulher quer porque quer ter o marido dela? Porque ela tem ciúmes dele, daquele homem feio que meu Deus do céu. . . Pois então, acontece que ela também acha que todo homem quer, sabe,” e então minha mãe fez um gesto sugestivo com as mãos, antes de terminar a frase. “Quer pam-pam nela!”

     Neusa era uma mulher de 68 anos de idade, moradora da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Sua pele era de um negro claro. Acima do peso, porém mais alta do que a média, de braços pelancudos e flácidos e pernas inchadas. Também tinha dificuldades para andar, por isso mancava torto e lentamente por onde passava. As marcas tanto da idade quanto do sol de Bangu eram evidentes em seu rosto e em seus ombros, pelo luxo que se dava em não usar camisetas ou camisas, mas apenas vestidos floridos das mais diversas cores. Seus olhos eram bem pequenos, e só era possível vê-los quando tirava os óculos devido ao peso, ao incômodo, das plaquetas. Mas ela também dirigia, e incrivelmente bem, apesar das dificuldades que a idade trazia consigo. E suas unhas, dos pés e das mãos, estavam na sua maioria das vezes bem feitas, com o capricho da vaidade que ela podia se presentear. Poucas vezes conversei com ela, e nelas entendi que Neusa era uma mulher cansada. Talvez fossem os filhos, os netos, ou até a própria igreja a qual fazia parte. Eu nunca soube, e nunca me aprofundei bastante para isso, contudo me sobram apenas pré-julgamentos devido a poucos momentos de encontro com ela, e do que ouvia minha mãe dizer a respeito. Ela arrastava sua voz, sempre ofegante como quem põe uma vírgula a cada palavra dita, e quando realmente vinha um descanso na frase, ele acabava sendo bem longe devido ao extenuante ato de falar, por isso algumas de suas histórias não terminavam no mesmo dia, ou no mesmo lugar. Minha mãe, como manicure, fazia suas unhas para dar à Neusa o tempo necessário para falar o que quisesse. Acredito que o ato de fazer as unhas, bem como o processo de ir ao salão, esperar sua vez, e finalmente chegar o momento de sentar-se à cadeira e molhar as mãos, tinha uma ação terapêutica.

     “Mas como assim?” eu perguntei, não incrédulo com o desejo sexual alheio, mas curioso para o desenrolar das informações.

     “Ela acredita mesmo! De verdade! Com toda possível convicção, que as pessoas a perseguem. Mas assim, só homem que quer ela. Todo homem. E ela fala de um jeito surreal. Ela é cobiçada por todo mundo, e depois ela vem reclamar com a cara durinha. Diz que não tem direito de ir e vir,” e então minha mãe começou a imitá-la, de queixo erguido e batendo os pés no chão. “Como assim eu não tenho o direito de ir e vir? Eu sou uma mulher de 68 anos, eu posso ir aonde eu quiser! Quem essas pessoas pensam que são? Ninguém me manda, ninguém me proíbe de nada! Mas eles ficam me olhando, me desejando, em todo lugar que eu vou! E é muito chato isso, é desrespeitoso!

     Meus olhos se abriam de espanto ao ouvir, ao conhecimento da existência de devida loucura. Confesso que soltei umas risadas indecorosas, fruto do nervosismo pela incredulidade do que estava ouvindo. A imitação, enfim, terminou, mas agora eu estaria preparado para caso voltasse.

     “Só que semana retrasada ela veio fazer as unhas, né. E aí começou a contar de quando morava em Itaguaí. Você sabia que ela morava lá? Então, ela teve que sair de lá com a filha, a Neide, ainda bem pequena porque a Neide tinha umas perebas nas pernas que ela disse que era por causa da maresia, e por causa disso se mudou de lá e veio pra cá. Só que aí, né, ontem ela me mandou um zap dizendo que não ia vir hoje, porque tá todo mundo conspirando contra ela, tá todo mundo de olho nela. Só que eu acho que eu tenho culpa no cartório.”

     “Ué? Por que você teria culpa?”

     “Eu acho que eu desparafusei alguma coisa na cabeça dela, que já não é uma das melhores. Porque semana passada ela disse que encontrou, no Calçadão de Bangu, um homem que perseguia ela na rodoviária de Itaguaí. Que era um homem muito bonito, muito charmoso, que andava fardado–porque ele era da polícia–, alto, bem penteado, e de bigode volumoso. Mas o homem ficava o tempo inteiro olhando pra ela, desejando ela, e ela já tinha a Neide nessa época. Aí ficava essa situação dos dois se comendo com os olhos, porque não daria pra fazer nada visto que ela já era mãe e casada com esse homem feio que chama de marido e morre de ciúmes até hoje.”

     “Porra, mãe, mas se ela que hoje tem 68 anos encontrou um cara da época que a filha dela ainda era criança, então, caralho, o sujeito hoje é uma múmia, né. Não tem nem o que fazer. Se soprar, ele cai.”

     “Ela disse que ele tá exatamente igual. Continua alto, forte, e fardado.”

     “Ah, pronto! Foi conservado em formol então, porque idoso nenhum fica andando fardado nesse sol que só Bangu tem. Duvido. Essa mulher precisa é se tratar, não é possível.”

Minha mãe então começou a gargalhar.

     “Porra, e só terapia não vai ajudar, não. Ela precisa tomar banho de água benta diretamente do Vaticano. E depois disso ainda levá-la pra um terreiro, de preferência em Sepetiba, pra ver se desfaz aí o que há muito tempo perturba essa mulher.”

     “Filho, você imagina a minha cara tendo que ouvir isso. Eu catucando os dedos da mulher tendo que ficar de cara séria. Não dá, não. Eu não sei de onde conseguia ficar séria. . . E pra piorar, ela começou a cantar uma música da Fafá de Belém, porque lembrava ele, mas não sabia o nome. Aí eu rapidinho coloquei no Google né, e depois dei play no Spotify.”

     “Assim você quer me fazer chorar, ela perguntou. E aí eu perguntei o porquê. Me fiz de sonsa, né, porque já não conseguia mais segurar a vontade de rir. “Hoje eu vou sair chorando daqui. E quando eu terminei de fazer as unhas dela, ela virou pra mim e me perguntou se eu podia acompanhá-la até o portão e se eu podia ficar olhando ela até entrar no carro dela.

     “Porra, e ainda tem que tomar conta dela pra atravessar a rua?”

     “E ela estaciona o carro lá na puta-que-pariu, pra você ver, perto da casa do Osvaldo. Eu não taquei pedra na cruz, não, mas taquei um pedregulho. E ainda derrubei a cruz com Jesus e tudo.”

     “Coitada dessa mulher,” eu respondi.

     “Vou ter que falar com a Neide sobre isso. Não queria falar, não. Mas tá impossível. A Neusa tá com medo de sair de casa e encontrar o tal do homem dela.”

     “Enfim, obrigado pelo almoço.”

     “De nada, meu filho.”

 

“Ninguém me faz

Amor tão bem

Como você

Ninguém mais

Me enlouquece de prazer

Como ninguém jamais

Ah! Meu homem

Você é demais”

 

Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 25/03/2023
Código do texto: T7748625
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