O vira-lata e o desregulado
Não lembro bem como começou. Sei, porém, que foi aos poucos, sem vexame algum, sem recomendação médica, a princípio; apenas pelo gosto das madrugadas, do friozinho peculiar a esse período da existência, em que um homem desregulado pode olhar-se a si mesmo demoradamente, sem a necessidade de espelhos, e dizer, à maneira do poeta, cronista e humorista Antônio Maria, "A noite é grande e nela cabem todos nós".
Não sei exatamente a partir de que momento me tornei desregulado. Suponho, entretanto, que foi nas proximidades de minha prevaricação. Faz tempo que pratico indevidamente atos de ofício em favor de interesses sentimentais. Antes de envelhecer, eu era inclusive um sujeito habitual, desses que dormem oito horas seguidas, desses que não bebem álcool ou rivotril, desses que sequer têm coragem de falar palavrão em público. Agora, velho precoce, mudei bastante, naturalmente para pior.
Acredito que vem desta fase esta minha patologia que consiste em caminhar no escuro, sem direção predefinida, à procura de não sei o quê. Nesse particular, sempre me causaram inveja as curvas femininas da Cel. José Bezerra Montenegro, que conhece como poucos a noite palmarina. Durante o dia é uma rua feia, barulhenta, gorda de gente e polícia. À madrugada, metamorfoseia-se, embeleza-se, silencia-se, emagrece, passando longe de qualquer suspeita policial, tendo como espectadores apenas e geralmente eu e alguns destes taciturnos vira-latas.
Há um especificamente que, física e psicologicamente, me persegue bastante. Durante a noite, esconde-se aqui, embaixo de uma dessas árvores que protegem a Cel. José Bezerra Montenegro do calor escaldante; de dia, desconheço sua morada, que nunca o vi fisicamente à luz solar. É preto, assim como a noite. Além desse atributo, tem olhar aparentemente vazio, pelugem escassa, aproximadamente cinco quilos e um sorriso que nunca vi. Mas isso não faz mal não, pois há uma máxima segundo a qual o homem é tristemente o único animal que ri.
Esse vira-lata insone, assim como eu, parece gostar de caminhar à noite. Quando passo, ele, não apenas por educação talvez, me acompanha. A primeira vez que me apareceu, como parte de minha sombra, achei que fosse me morder. Então eu corri para longe dele. Ele não me acompanhou. "De duas, uma", pensei: "Ou eu sou muito veloz ou ele é modesto em demasia". Conheço-me satisfatoriamente para saber que, em matéria de velocidade, sou veloz feito uma tartaruga. Daí em diante, o vira-lata ganhou minha admiração.
A segunda vez em que nos encontramos, não corri dele, nem ele de mim. Um bom sinal, supus. Daí nos olhamos, ele abriu um longo bocejo, em seguida, a passos lentos e um olhar aparentemente vazio, me acompanhou. No caminho, parou três vezes para fazer pipi.
Nessas ocasiões, eu interrompia os passos e aproveitava o momento para contar paralelepípedos e conjugar o verbo haver no pretérito imperfeito. Satisfeita sua necessidade fisiológica, ele retornava revigorado e mais ou menos veloz, passava à minha frente, balançando o rabinho, trotando feito um Manga-Larga Marchador. A certa altura, parava, cansado, com a língua toda suada e completamente exposta ao frio madrugador.
Reconheço publicamente sua disciplina física, sua velocidade padrão, seus passos certos na medida exata, seu bom humor humano, em que pese seu olhar taciturno. Reconheço esse vira-lata como parte de meu time e de minha existência. Somos andarilhos noturnos e insones; ele talvez por opção, eu por convicção. Amamos as curvas femininas da Cel. José Bezerra Montenegro, mas amamos sobretudo a noite, que nos acolhe, nos ressignifica, nos regula, tornando-nos, durante sua estadia, tornando-nos visivelmente mais bonitos e saudáveis.