Duas Margens
Dentro de mim um riacho corre dividindo-me em duas personalidades. Em uma margem, sou plácido, previsível e plano. Não há surpresas em minha doce metade; sou constantemente reconhecido em meu bairro e todos sabem o que faço ao longo do dia, desde o início ao fim. Se estou triste ou muito alegre, poucas pessoas reconhecerão; minha mudança de humor é sutil e minha disposição de ânimo, discreta. Nesse lado do terreno, sou otimista e chego a crer na minha direita, vendo possibilidade de que saia algo de bom. Meu pagamento é ser um protagonista irrelevante, que não decepciona ninguém, coisa que nunca consigo fazer. Meus olhos não são verdes nem azuis.
Na outra margem sou erosões nas planícies, depressões nos planaltos. Tenho medos e também certezas... pela manhã há sol brilhante e poucas nuvens; no meio do dia, sofro tempestades ruidosas e terreno lodoso, mas tenho dias de céu cinzento e lágrimas de chuva colorindo com tons neutros o que deveria ser alegre. Sou terreno montanhoso, sou um vale com oásis, sou personagem principal motivado por experiências de um passado complexo. Sou decidido e imprevisível, porém sou humano e amigável. Não podem sondar à minha esquerda e não conseguem entender meu longínquo horizonte, porque é meu futuro que me aguarda, sem planos ou desígnios; meus projetos não se realizam e minhas estratégias não podem ser inteligíveis. Não dou margem a barcas desavisadas. E meus olhos não são castanhos.
Eu sou os dois lados desse riacho; sou as águas que correm nos leitos, escavando sulcos onde cravam-se histórias. Vou singrando de uma extrema à outra com meus dilemas, cujas premissas se excluem com frequência. Sou os dois lados desse riacho; sou a cabeceira da nascente e a foz em estuário, onde me torno oceano.