Plantando dentes de leite, tubarão que dorme a onda leva, e o vizinho pavão.

O ar vem em blocos. Enchendo e soltando. Não adianta. É aquilo de sentir a cabeça vibrar, do pensamento vir fragmentado, em looping. Como se pensar várias vezes a mesma coisa fosse recuperar algo. Pelo contrário, só recicla, faz da incerteza uma lasanha requintada, daquelas bem ruins que se compra congelada e se come com um garfo de plástico pra não sujar a louça. Garfo que tem uma partezinha fina embaixo que vai cortar sua boca, que vai te deixar um gosto de sangue e você vai ficar a semana inteira, vez ou outra, passando a língua, lambendo o lugar do cortinho, lembrando, lembrando, sentido um gostinho de sangue aqui acolá.

Nossa, que jeito horroroso de começar uma crônica. Me desculpa. Vamo de novo. A cidade está um caos, tão tocando fogo em tudo que é can-. Ok. Ruim também.

Ok, botei um café, devo ter ouvido uns dois helicópteros aventando o medo, passando pra lá e pra cá. Ou será que era um só? Era um só e ele só fez a coisa natural do que voa que é ir e voltar? Não sei. Helicópteros parecem um pouco com tubarões não parecem? Não só na parte de que não há asas, de que são mais... compactos, mas também na questão de que parecem que vão cair se pararem.

Não sei se é verdade, mas dizem que tubarão que para morre deitado. Não, não era assim. tubarão que dorme a onda leva, era esse o ditado. Não! É camarão! Camarão que dorme...Enfim, a metáfora não importa, não importa.

Esses tempos estranhos fazem a gente perder a capacidade de abandonar a dureza das coisas, não é? e isso me assusta muito, sério. E não há muita culpa a quem se dar, como que se colhe palavras em chão de pólvora? Difícil. Difícil.

O ar vem em blocos. Enchendo e soltando. Não adianta. É aquilo de sentir a cabeça vibrar, do pensamento vir fragmentado, em looping. Hoje já é amanhã. Tá chovendo agora, chovendo enquanto escrevo. Olho pra janela e um clarão se esgueira tipo uma lâmina. A notícia que lotou os jornais hoje foi da bomba que colocaram numa das colunas da ponte da cidade, nada aconteceu, ainda bem. As coisas tão difíceis por aqui, mas ainda sinto que tô me nutrindo de alguma coisa. As conversas, dos amigos, dos carnavais adiados, da poesia...

Vi uma cena hoje, isso, vi.

Estava parado olhando para o vaso que tem na sala, um vaso de plantas, mas com penas de pavão do vizinho dentro. Não, do vizinho não. Seria engraçado inclusive, um vizinho meio pavão, meio homem, mas não. Pavão ave mesmo.

Mas então estava lá, parado olhando aquilo, tomando meu café, a casa numa calmaria estranha, e então imaginei uma criança agoando, agoando um dente, e plantando-o na terra. Um amigo pergunta o porque, e a resposta vem numa singelice: "Pra nascer uma árvore de dentinhos, pra fazer a dor ir embora"

Não sei. Talvez seja mania de escritor, ver imagem e diálogo nas coisas vivas, cenas que se mexem em quadros parados. Mas é isso, vamos sendo crianças, aguando pra fazer a dor de dente passar, e nascer, e crescer, e atravessar. Ah, e se ainda estiver em tempo, feliz dia da poesia.

Se cuidem.