DESGOSTO
Dos meus defeitos, e não são poucos, talvez o pior seja não esquecer o que me magoou, independentemente de quando ocorreu o fato feito em meu desagrado. Sei que isso é prejudicial não só a mim, mas também às pessoas com quem eu me relaciono, mas não consigo deixar de pensar no que aconteceu, foi dito, ou não. Parece-me que a mágoa é recente, apesar de ter sido há muito tempo. A dor é a mesma, a raiva é igual e o desapontamento é tão grande quanto no dia exato em que me senti agredido, ferido e humilhado.
Mesmo que me peçam desculpas por me magoarem, não consigo perdoar totalmente. As desculpas não fazem a ferida no peito parar de doer. Amenizam o estrago causado, porém não apagam o mal que me foi feito. Se são necessárias então? Obviamente sim. É o mínimo que o errante pode fazer para diminuir um sentimento de desgosto provocado por um descuido impensado. Não sei perdoar os erros dos outros, apesar de querê-lo. Minhas cicatrizes são expostas e sensíveis, voltam a doer a qualquer instante, com a mínima lembrança. Fecho o cenho no mesmo instante, franzo a testa com a mesma intensidade e, não raro, trato com desdém como se fosse hoje o mal feito ano passado, retrasado, dez anos atrás. Guardo mágoas como utensílios não usados cotidianamente em baús da memória, prontos para serem revelados caso precise. E não é por querer ferir quem me feriu em uma vingança infantil que faço questão de recordar a quem me causou tristeza para a proporção do meu ressentimento, embora tenha um pouco disso, não é o principal, nem o que admiro. Faço para que não se esqueça da falta; para que não se repita da mesma forma; para que se lembre de que pequenos gestos infelizes, os detalhes apenas, maltratam o coração. Mas lá no fundo, sinto-me satisfeito por fazer com que esse mesmo erro doa, como um tapa violento, no rosto de quem mo deu. Não sou de tudo uma pessoa vingativa, mas sou humano, não um mísero inseto sem a dádiva do sentimento.
Cazuza — novamente ele — conseguiu expressar um lado positivo nisso num verso genial de Muito obrigado (por ter se mandado), quando diz “pelos dias de cão, muito obrigado (...) me trair, me dar inspiração preu ganhar dinheiro”. Óbvio que a dor que se sente é lacerante, mas tenho que usar de artifícios para transformá-la em algo, no meu caso, arte. E quando ganho o meu suado dinheiro com ela, preciso agradecer pela iluminação artística. Mas queria antes de tudo não tê-la. Tenho-a e por isso hoje escrevo. O que me levou a pensar estas pobres palavras hoje foi um fato passado que já deveria ter sido enterrado e devorado pelos vermes, contudo, como já expliquei, é difícil demais para eu deixar as cortinas caírem para encerrar o drama da minha vida.
Quando Mariana me comunicou que passaria a virada do ano com os amigos na Praia do Sono, apesar de nosso romance ser ainda um broto que precisava de cuidados extremados para não morrer, senti-me desfolhado, murcho e prestes a secar . Acredito que em um namoro — que não me condenem os que de mim pensam de forma contrária — o casal queira compartilhar todos os momentos alegres e nunca, jamais passar uma data significativa afastados por vontade própria, vaidade ou impulso. Sua decisão me fez , na época, pensar em terminar imediatamente com a relação que começava a engatinhar. Se no início, quando é normal que se queira ser inseparável, ela me deixou a ver navios, o que seria do futuro? Eu veria do porto as embarcações afundarem sem que nada pudesse fazer? Foi um golpe duro que me faz lastimar até hoje. Embora eu queira passar por cima disso, perdoar e esquecer, é impossível sem antes discutir os porquês de tão mal ato. Penso em até quando suportarei as dúvidas e aceitarei suas ações passadas que contrariam minhas convicções. Como eu disse, desculpas não desfazem as faltas nem fazem parar a dor. Eu a desculpei depois de uma longa discussão, mas não posso perdoá-la ainda, nem sei se poderei um dia, embora seja claro que meu desejo seja esse. Que isso é nocivo para nós e corrói qualquer estima é verdade, mas como proceder se esse fantasma ainda me assombra?
Sou, por ela, apaixonado, amo-a como nunca amei em vida, mas as decepções que infelizmente tive me fazem ainda pisar com cuidado em seus terrenos por ter medo de me machucar mais do que já me machuquei. Não só apenas esse triste episódio do início me melindrou, outros tantos ocorreram sucessivamente nos primeiros meses que, penso eu, deveria ter usado a razão e dar como encerrada a tentativa de relacionamento com essa pessoa tão diferente de mim, não só em maturidade, mas também em pensamento e forma de agir. Tivemos, ou temos, bons momentos que me valeram muito, claro que não me esqueço deles, mas os dias negros também são de verdade, e a escuridão me assusta por temer que se repita, apesar de não querermos. Sei que hoje ela é diferente e valoriza nossa união, mas o antes existiu, não se pode ignorar. Gostaria de saber como estaríamos agora se minha reação fosse outra, se não tivesse lhe dado as chances que dei, se não tivesse relevado suas inúmeras falhas comigo, coisas, a meu ver, tão graves que, em outros tempos, jamais aceitaria.
As pessoas, embora não reconheçam, vivem hipocrisias. Lembro-me de Gregório de Matos em seu “pequei Senhor, mas não porque hei pecado”, como se pecar fosse motivo para Deus ser feliz na glória da absolvição. Não sou Deus, nem passo perto de sua bondade, portanto não me venham com essa história de me contentar com um pedido de desculpas quando se sabe que seus atos egoístas provocam sentimentos ruins naqueles que os querem bem, a fim de abrandar a ira de sofrer o desengano.