Solidão de celular
Meu smartphone quebrou, atendendo a um desejo secreto deste velho cidadão analógico, remanescente da arcaica era dos sinais elétricos contínuos. Um citadino inadaptado para a vivência na realidade dos sinais digitais, secretamente hostil aos valores traduzidos por código binário. O fato é que meu celular entrou em desarranjo. O elemento sem o apoio da linguagem da máquina, desprovido de celular, é um zumbi sem alma do código binário. Dependência digital tem até nome: nomofobia. Virou a cachaça moderna, a droga que causa estranha dependência. Sem estar conectado ao celular, o elemento apresenta sinais de delírio, isolamento e insânia. Inclui insônia. A tecnologia arrastou a criatura moderna para a compulsão de um bêbado, um “noia” eletrônico obcecado pela dependência digital.
No meu caso, este humilde, raro e maravilhoso homem do século vinte, voltei à cadernetinha de endereços e contatos, enquanto rondava pelas lojinhas de técnicos de celular à procura de uma peça raríssima para meu aparelho ainda mais insólito. Trata-se de uma geringonça criada por uma empresa indiana, muito simples e vagabundo, mas barato. E o que é barato neste mundo da exploração globalizada não se cria. Enfim, ninguém capaz de salvar meu telefone móvel. Sem condições de me manter conectado no vazio da internet móvel, voltei à leitura de livros físicos, hábito que já estava fora da rotina. O problema do celular seguia aberto e quase insolúvel. Comprar um novo estava fora do orçamento. É assombroso, mas eu tenho outras prioridades de consumo. Milho moído, por exemplo. O famoso fubá. Sou do estranho tipo que prefere comer cuscuz a usar o celular. Conscientemente ou não, andei perambulando pelas ruas do centro à procura de um orelhão que casasse com minha cadernetinha de anotações de telefones, contatos antigos não mais permitidos pela nova narrativa da comunicação humana. Deu-me angústia de ter sido uma pessoa do tempo dos orelhões e até do telefone de veio. Não confundir com “telefone de velho”. Sim, eu fui operador em uma central telefônica na estrada de ferro, cujos sinais elétricos eram gerados por uma manivela.
Caiu-me à mão o livro “Alta fidelidade”, do inglês Nick Hornby. Nele pesquei a citação: “Não tenho amigos, e sim pessoas cujos números de telefones eu não perdi”. De modo que quando consegui comprar um celular de segunda mão, transferido o chip, apagaram-se todos os contatos. Relacionamento via eletrônica continuava zero. Vi-me um sujeito sem amigos. Não se salvou nenhum. Onde andas, camarada? Eu te mandei o sinal e não recebeste. Que sinal? O da minha ausência. Fiquei quase uma semana sem ligar e você não notou meu eclipse eletrônico. E você, minha amiga de tão longas e analógicas datas, por que não veio me ver, saber se estou vivo? Que foi que nos aconteceu? Desaprendemos a nos visitar?
Não rola mais segredos de liquidificador, sentença poética de Cazuza. Hoje em dia a gente pode escutar os segredos das pessoas, ditas no celular. Tem um aplicativo chamado Ear Spy que permite ouvir conversas ao redor, utilizando os fones de ouvido de dispositivos iOS e Android. Grava-se conversa de presidente da República, ouve-se segredos de alcova e outras desgraceiras deste mundo da comunicação total e calamitosa. Eu com minhas duas cabeças, uma cabeça analógica e outra digital, vou seguindo meu caminho, desamparado pelas novas e excludentes tecnologias, agarrado como velho náufrago aos cacos das interlocuções obsoletas.
Enfim, comecei a receber ligações dos contatos no celular. À medida que chegam as chamadas, salva-se automaticamente o número. Revitalizou-se minha caixa de contatos. Entre alianças e parcerias, companheirismos e vínculos antigos, aquela conexão afetiva e única que começou nos anos setenta com um bilhetinho “gamado”, como se dizia na época. Enfim, a troca de celular filtrou as amizades. Restaurada, a caixa de contatos ficou com apenas dez por cento dos números anteriores. Só que a tecnologia moderna não sanou aquele velho problema das linhas cruzadas. Ao ligar para um número, uma terceira pessoa diferente atende. Linha cruzada. Liguei para a sessão de “retidão cívica”, atendeu o mestre da velhacaria Valdemar Costa Neto. Ao chamar o número da “tolerância e compaixão cristã”, respondeu o pastor Silas Malafaia. Deve ser algum problema de configuração do celular.