Apartamentos
Jorge gosta de contemplar a manhã através das grades da varanda de seu apartamento. Ele tem o hábito peculiar de pôr para tocar no celular sons passarinhais, apenas para ter na boca da lembrança o gosto doce de sua juventude interiorana. Sente falta dos pássaros enquanto ouve os cantos guturais dos carros. Ele tem muitas aves encarceradas dentro de si. As grades da sacada constantemente o lembram, de que o corpo pode estar retido mas a alma estará sempre em voo.
O maior temor de Clara: dar de cara com alguém no elevador. A pandemia plantou nela uma aversão à companhias em espaços de poucos metros quadrados e os frutos permanecem até hoje. Além disso, detesta ser obrigada a dar uma bom dia ou um sorriso qualquer (aquele tipo de obrigação que criamos para nós mesmos), quando na verdade está querendo se ver longe de quem quer que seja. Claro que ela sempre foi meio fechada para o convívio social, porém, quem tem a chave para adentrar em seu círculo limitado é amado incondicionalmente. Clara é como uma planta adaptada a um vaso, gosta de fincar raízes em espaços pequenos mas que sejam somente seus. Ela é como um planeta que orbita distante do sol, mas que sem a sua gravidade morreria, ninguém vive sem sol. O sol de Clara é café, livros e alguns poucos amigos.
Um fato científico é que tudo tende a manter o movimento até que algo se oponha a ele, até que alguma força o freie. Fernando segue à risca esse mandamento, acorda todos os dias muito cedo e, em jejum, desce do 402 para a rua a fim de iniciar a sua corrida matinal, ou seria crepuscular? Muitas vezes a manhã ainda está limpando as remelas dos olhos e adiantando o alarme da soneca, enquanto Fernando queima suas calorias. Certo dia, inventou de correr na chuva. Como resultado, foi contemplado com 40ºC de febre e teve que parar no hospital. A vida sempre impõe um freio quando ultrapassamos a velocidade permitida.
Doralice odeia quando começa a tomar banho e percebe que esqueceu de pegar um sabonete novo, então tem que se contentar com um pedaço miúdo que vai ficar se desmanchando, grudando em sua pele e caindo no chão. Ela gosta de escrever textões nas redes sociais e é durante o banho que tem os seus melhores insights. Está próxima de lançar seu primeiro livro: "Devaneios de Chuveiro", onde reunirá todas as ideias geniais que teve na ducha. Odeia o seu nome, diz que é nome de velha. Por isso, gosta de usar o pseudônimo Beatriz, acha lindo, era o nome de sua vozinha querida que faleceu ano passado.
Bernardo gosta de alimentar os gatos de rua. Sai sorrateiramente à noite com um saquinho cheio de ração e distribui em diversos montinhos para não dar briga entre eles. Fica lá parado, com um sorriso no rosto, olhando os bichanos comendo e ronronando agradecidos. Até que, certa vez, quando desceu para ver os gatinhos, não os encontrou mais. Depois soube que o síndico do prédio deu fim nos gatos pois alguns condôminos estavam reclamando da presença deles. Bernardo, em sua fúria silenciosa, desejou a todos os envolvidos o pior dos infernos e, se pudesse, meteria todos na cadeia ou algo pior. Até hoje ele sai toda noite para ver se algum dos gatinhos vai aparecer novamente, e tudo o que volta é uma dor no peito.
A lasanha já estava saindo do forno. Marlene serviu a mesa. Havia chamado alguns amigos e parentes para um almoço no fim de semana. Seu hobby é cozinhar para os outros, ainda que deles não se escute um elogio. Contenta-se com o sorriso dos alimentados enquanto se fartam. A linguagem do amor de Marlene era aquele ato culinário. O amor é gratuito e não exige contraprestações. Fazia questão de sempre fornecer potinhos com comida às pessoas do prédio, quando sobrava, ainda que nunca devolvessem os recipientes. Sacrificou a saúde do seu corpo ao aumentar o consumo de sorvetes, só para depois utilizar as embalagens como marmita. Sairia mais barato comprar potes de plástico, mas Marlene tinha o pecado da gula.
Heloísa odeia qualquer tipo de barulho pela manhã, salvo o borbulhar da cafeteira elétrica. O eventual baticum matinal das britadeiras logo lhe rende uma bela enxaqueca, no entanto, à noite a britadeira é ela. Quando escurece, Helô coloca para tocar um rock pesado no talo, é quando ela põe para fora todos os seus demônios enquanto apóia uma guitarra imaginária nas mãos e gira loucamente a cabeça. O vizinho de baixo golpeia firmemente o teto na tentativa de fazê-la cessar a balbúrdia, porém sempre sem sucesso.
Rodrigo tem uma peculiaridade, tem medo de dormir. O pânico nasceu na infância, quando ele perdeu o pai e a avó no mesmo ano, ambos faleceram enquanto dormiam. Sempre que repousa a cabeça sobre o travesseiro, teme não poder ver o amanhecer do dia seguinte. Por isto, estica ao máximo o seu dia, grudando os olhos no celular até arderem ou lendo um livro até a vista cansar e, quando esgotados todos os meios de manter as pálpebras erguidas, inevitavelmente cai num sono sem sonhos. Todas as manhãs desperta feliz da vida por não ter morrido, ignorando suas olheiras profundas e os bocejos frequentes. Mal sabe ele que dormir pouco pode elevar o risco de morte e reduzir a expectativa de vida em nove anos.
Conceição é a louca das plantas. Lá da rua é possível avistar um ponto verde entre as sacadas desbotadas. Ela fez sua selva particular, composta de amizades íntimas com as quais dialoga todos os dias. Suas plantas são confessionários e guardam a sete chaves segredos que nem seu falecido marido sabia. Muitas vezes, nas raras ocasiões em que sai de sua mata, colhe plantinhas no meio da rua e até comete a ousadia de furtar umas mudas na vizinhança. Quem vai na casa da Conceição dificilmente sai sem carregar uma muda de lembrança. Ela diz aos quatro cantos do mundo que, quando chegar o momento do inadiável encontro, ela vai querer ser árvore, de preferência uma bem florida para semear sorrisos nos transeuntes.
Matilda é a louca dos gatos. Tem uma queda por um tal de Bernardo, um garoto meio esquisito que sai todas as noites para alimentar os bichanos desabrigados. Nunca teve coragem de puxar papo com o moço, mas conta sempre a seus gatos as aventuras platônicas de todas as vezes em que ela quase conseguiu falar com ele. Os felinos não dão muito ouvidos, no máximo mexem as orelhinhas e voltam a lamber os fundilhos.
Todas as tardes Gilberto põe no seu aparelho de som do século passado o cântico religioso "Ave Maria". É quando ele entra numa espécie de êxtase espiritual, de olhos bem fechados em sua poltrona aveludada. É um cristão fervoroso de tal feita que atribui a Deus tudo o que lhe acontece. Gilberto perdeu a esposa e os dois filhos num acidente de carro, era o dia do seu aniversário. Ainda assim não perdeu a fé e encontrou nela um refúgio onde deposita todas as suas dores. "Se aconteceu assim, é porque Deus quis". Enquanto ali, em seu apê, se encontrava no paraíso, no andar de cima com certeza residia o inferno. Uma "somzeira do capeta", como denominava o heavy metal do andar superior. Entre o 201 e o 301, dia após dia narrava-se o apocalipse.
Diversos astros orbitam ao redor daquele monolito de concreto, um superorganismo, do modo de uma colmeia ou um formigueiro; ou ainda um cárcere, uma gaiola enorme a abrigar os mais variados lamentos. A palavra apartamento vem de apartar, separar, manter distância, segregar. Foram construídos no intuito do isolamento. No entanto, a vida humana é um organismo que não prospera na solidão. Solitários somos como caquinhos de vidro coloridos, por vezes afiados. Já no círculo de amigos ou na reunião da família, confeccionamos um belo mosaico. Há quem ame estar só, mas andar muito tempo com a própria companhia pode ser perigoso, às vezes dizemos coisas horríveis a nós mesmos. Cada qual carrega um condomínio de muitos blocos dentro de si, onde residem os mais diversificados sentimentos e excêntricas personalidades. É árduo o ofício para nós, síndicos, pôr esta casa caótica em ordem, ainda mais quando colide de frente com outros caos. Cabe-nos, por fim, dividir este elevador lotado no qual estamos todos. Alguns descerão pelo caminho, encontrarão o seu andar e as portas abrirão no momento certo, revelando o destino final.