Edith Piaf na Tapiocaria

Por volta do ano de 2010 eu tinha uma tapiocaria no Icaraí/Caucaia/Ceará.

Era um local bem interessante, cheio de livros, algumas relíquias dignas de um museu, tais como uma máquina de escrever, um telefone de disco do tempo do bumba e muito disco de vinil. A música era a grande estrela do ambiente, eu tinha um acervo muito grande, tendo como base a nata da MPB e da música mundial. Eu brincava dizendo que aqui tem de tudo, até tapioca e café.

Em um dos meus textos escrevi sobre o aniversário de 40 anos do disco "Abbey Road" dos Beatles, mas, desta vez a história se passa com a genial Edith Piaf.

Chegou um grupo de 5 pessoas, onde 4 dos membros já eram clientes e amigos de outros carnavais. A quinta figura era uma senhora ligada a cultura do Ceará, que chegou elegantemente marcando os passos com uma bengala.

Caprichei na playlist, pois já conhecia o gosto da maioria. Rolava Chico, Caetano, Gil, Tom Jobim, Paulinho Pedra Azul, Beatles, Frank Sinatra e adjacências. Era possível ver a felicidade de todos e, em especial a minha, pois eu adorava esse momento de DJ, onde o público responde positivamente a cada "página musical" lançada.

Quando pensei que tava agradando, a senhora cochichou com uma pessoa de seu grupo e, em seguida, me chamou e me fez um pedido especial:

_ Você pode tocar Edith Piaf?

"Putamerda"!!! Eu não tinha nada, nada da Edith Piaf. Caramba, fiquei arrasado!

Rolou um tudo bem por parte dela, mas, na realidade pra mim não estava. Tratei de incluir as músicas de Piaf, o mais cedo possível, em nosso repertório.

Um ou dois domingos depois, bem no começo da tarde, com pouco movimento na tapiocaria, cheguei lá fora e, lá vinha a tal senhora. Caminhava sozinha, vindo em minha direção pelo lado direito, elegantemente, com calma, usando a bengala para se orientar.

Agradeci aos santos pela oportunidade de redimir meu pecado, calculei na cabeça o tempo de sua passagem por minha porta e, me posicionei com NON, JE NE REGRETTE RIEN de Edith Piaf na "agulha".

Quando seu pé direito apareceu na minha visão, soltei a fera em forma de música!!!!!

Essa senhora olhou para dentro da tapiocaria, olhou pra mim e, sem dizer nada, sentou no primeiro banco da mesa esquerda. Foi possível ver a emoção invadindo seu corpo. Seus olhos brilharam nas águas silenciosas do mar em que ficaram imersos.

Tive medo da mulher ter um treco e, de quebra, me levar junto, porque eu também paralisei.

Coisas assim marcam nossas vidas pra sempre.

Ela só tinha vindo receber o que ficou faltando. Não pediu nada, ouviu apenas umas três ou quatro músicas, levantou, agradeceu acenando levemente com a cabeça e, assim como veio partiu.

Fiquei feliz e aliviado, afinal, consegui fazer com que mais um cliente saísse satisfeito do nosso recinto!

jrogeriobr
Enviado por jrogeriobr em 19/03/2023
Reeditado em 20/03/2023
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