O MEDO
QUANDO O MEDO NOS INTIMIDA
Nelson Marzullo Tangerini
Durante quatro anos, a possibilidade de a democracia ser engolida de forma voraz pelo fascismo foi um pesadelo constante em nossas vidas. Os tubarões famintos ameaçavam abocanhar todos aqueles que demonstravam apreço pela cultura, pela educação, pela saúde, pela ciência e pelos direitos humanos.
A imagem de um cruel torturador, Carlos Alberto Brilhante Ustra, passou a ser o fantasma que nos amedrontava quando a noite cobria a nossa casa e o país com seu manto escuro, mas bordados de vidrilhos: estrelas distantes, que ofereciam poesias e escadas imaginárias para a fuga do inferno. “Ora, direis, ouvir estrelas”, dizia o parnasiano Olavo Bilac.
Com maestria, o modernista Carlos Drummond de Andrade, escreveu, certo dia, sobre um futuro Congresso Internacional do medo:
“Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas.
Cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”.
Pessimista? Nem tanto, porque o ódio existia, escondido, e o gauche de Itabira, esperançoso, fingiu não percebê-lo, em sua formação, dentro do ovo da serpente. Talvez para não nos assustar. Mário de Andrade, ingênuo, otimista, acreditava na bondade e na generosidade do povo brasileiro. O século 21 mostrar-lhe-ia o quanto havia se enganado, e o quanto o “gabinete do ódio” vem destilando seu veneno contra a democracia.
Uma parcela da população temia que o fascismo se reelegesse e que haveria uma nova era de trevas, de ditadura, de tortura, de negacionismo, de fundamentalismo religioso e de apoio incondicional à milícia.
Milton Santos, escreveu que “Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro”.
Drummond e Santos, ainda que pessimistas, nutriam a semente da esperança. Como todos nós. Depois da ditadura, viria uma era fértil, com liberdade, com pessoas bem alimentadas e cultas, o que não aconteceu. Foi curto o verão da democracia. E os autoritários saíram dos esgotos dispostos a demolir o edifício democrático que construímos com tanto sacrifício, depois perdas humanas: amantes da liberdade ceifados pela ditadura que se iniciou em 1964.
Mas há, ainda, aqueles que não creem que houve ditadura, que o genocida e sua caterva familiar e amiga não sujaram suas mãos com corrupção. Talvez porque, no Brasil, os políticos corruptos são sempre “suspeitos”. Alguns suspeitos são presos, enquanto outros suspeitos não são presos. Vai depender do grau de amizade, de conluio e de patente. A amnésia, a alienação – alimentada com pão e circo - leva as ovelhas para o matadouro.
Essas pessoas, que estavam perto de nós, familiares e amigos, diziam, de forma arrogante, que a impressa é que era corrupta. Ou que era comunista. E alegavam que ela não deixava o Messias trabalhar.
Amanhã será outro dia? Chico Buarque também acreditava na mudança. Como eu, como você. E vimos o renascimento do fascismo. Vimos a familiar se dividir. Vimos amigos destruírem uma amizade antiga. Vimos o ódio desencadear a destruição. O somatório do ódio ficou registrado, entrou para a infeliz história do Brasil: o 8 de janeiro de 2023.
Há os que, doentes mentais, acreditam nos ideais fascistas. Eu, porém, acredito numa sociedade livre, justa, racional e libertária. Mas juro: pensei que morreria num segundo mandato do genocida. E já que ele perdeu, e já que sobrevivi, quero voltar a acreditar que o sonho é possível.
O trabalho é pesado, mas é preciso trabalhar. Trabalhar, sem medo, pelo futuro sadio da humanidade.
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Na foto, o Prof. Milton Santos.