EITA MOSQUITINHO PORRETA
O tempo: era o velho Mato Grosso. Não havia estradas asfaltadas, a energia era precária, não existia TV, mas o trem da Noroeste do Brasil era o veloz, com suas Marias-Fumaça, a fuligem, o barulho cadenciado. O trem tinha a velocidade de um povo com uma vida harmoniosa em seu meio ambiente, com o gado, com a agricultura de subsistência e com o pequeno comércio.
Era o tempo em que os rapazes exibiam suas armas niqueladas na cintura, um cavalo bonito e uma "traia" de patrão (baixeiro, arreio, pelego, freio, buçal e outros, preferencialmente enfeitados com prata). Chegar nesse corcel era o sucesso com as garotas entusiasmadas.
Andar campeando o gado bravio, dançando bailes, banhando-se em rios de águas limpas era a vida. A caça era abundante e a Lei do "44"(*) vigente impunha respeito. A bandidagem presa pela "captura"(**) era de homens legendários, broncos e destemidos. Getúlio Vargas no poder e a rádio trazia as últimas notícias da guerra na Europa.
Ele, após concluir o curso primário no Colégio Magiano, em Três Lagoas; e o ginásio no Colégio Dom Bosco, em Campo Grande; foi para a cidade de Campinas cursar o ensino médio.
Terminado o científico, achou-se um doutor em um país onde mais de cinquenta por cento da população era analfabeta.
Quis voltar! Chamavam-lhe a estação do trem, os amigos, os parentes, os campos, as festas, os córregos de águas transparentes, as comidas regionais, a pesca abundamente, a caça e as andanças a cavalo.
Abordou o pai de forma cautelosa:
- Pai, já terminei os estudos, acho que está bom, quero ficar aqui para ajudar no comércio e com o gado.
Meu avô era pequeno pecuarista e comerciante em um povoado às margens da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Baiano de Guanambi veio parar no sul do Mato Grosso junto ao seu irmão João, o "tio João".
O velho Juvêncio era a sabedoria em pessoa, cauteloso, educado, bom pai de família, nunca bateu em nenhum de seus filhos. Sabe o ditado de que alguém "é um burro carregado de livros"? Pois é, muita gente letrada nada sabe da vida, mas meu avô, sem as letras, era um sábio.
O velho Jota (como minha avó Preta chamava o marido) aceitou a proposta na hora.
- Filho, se você acha que já está bom, estou precisando mesmo de você aqui. Sabe aquela grota ali, precisamos fazer uma cerca de arames.
Meu pai olhou desconfiado. Fazer uma cerca na grota? Era úmida, era pura pedra, um calor infernal. Fazer o que? Obedeceu às ordens do velho Jota, afinal queria muito ficar por ali nos folguedos daquela maravilhosa vida.
Cavar buracos para fincar os postes da cerca era terrível. Era muita pedra, muita mesmo! Uma hora ali equivalia a cem horas de estudo, muito suor, muita água, muito sol, mas o pior. Sabe o que era o pior? O pior dos piores? O lambe-lambe.
O lambe-lambe é aquele mosquitinho minúsculo que não pica, não ferroa; mas fica ali girando, girando, girando e vem onde? Nos olhos, nas narinas e nos ouvidos, prega no suor, inferniza, faz a pedra e a cerca, o peso dos postes, a força pra esticar o arame parecer um nada.
O lambe-lambe é aquele serzinho miserável que vem no teu rosto para te dizer que você não lavou a cara faz uma semana, é demoníaco, um tormento dos infernos.
Tá certo, você pode dizer: pior é o "porvinha" que pega no tornozelo no finalzinho da tarde, esse dói. O outro vai replicar: pior mesmo é o borrachudo, pega doído o safado.
O problema é que não era um lambe-lambe, um mosquitinho, era nuvens, milhares, milhões esvoaçando sobre a cabeça do estudante desistente.
Um dia, dois, três, na luta com as pedras, a umidade, o calor e aquelas miríades de lambe-lambe fez o moço "mudar das ideias".
- Pai, pensei bem, acho que vou voltar a estudar.
O velho Jota aceitou a proposta.
- Rui, eu estou precisando de você aqui e estou gostando do seu serviço, mas se quiser voltar a estudar, volta.
Quatro anos depois o moço, Rui Garcia Prado, meu pai, era um cirurgião-dentista oriundo do sertão brasileiro, do velho Mato Grosso. Que vitória estupenda da sabedoria de um homem que se alfabetizou em lombo de burro, nas comitivas de gado para o Estado de São Paulo, o meu avô Juvêncio da Silva Prado.
Moral da história: Mais vale uma nuvem de lambe-lambe do que discursos irados de um pai para que o filho volte a estudar. Mais vale um pai como foi seu Jota, nascido em 01 de janeiro de 1901 e falecido em 05 de maio de 1999, um homem do Século XX. Temos, hoje, pais assim?
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(*) Calibre de revólver usado. Lei do 44, a imposição da ordem pelas armas.
(**) Captura eram grupos de policiais e pessoas comuns destinada a buscar ou matar bandidos.