Coração de avó
Geralmente eu me dou bem como o espelho. Quando estou em sua frente eu não me desespero com os fios brancos que vão se multiplicando e formando mechas sem meu consentimento. Também não me entristeço ao ver minhas pálpebras mudando o contorno dos meus olhos, entristecendo meu olhar e deixando as marcas cada vez mais visíveis da minha idade. E meu sorriso também não diminui a extensão quando os vincos ao redor dos meus lábios vão se acomodando, invasivos, sem pedir licença, mudando meu semblante numa rapidez que desconhecia. Mas não foi sempre assim.
Quando criança, eu queria crescer depressa para viver o mundo dos adultos. E como demorou... Depois que fiquei mocinha, como quase todas da minha idade, vieram as paixões adolescentes, o sonho de encontrar alguém, casar e ser feliz com minha família. E como isso aconteceu depressa. Quando dei por mim, já estava casada com três filhos nos braços, uma família para cuidar, amar e viver os sonhos lindos que sonhei. Nem todos foram tão lindos, mas todos valeram a pena. Os que me fizeram sorrir, me realizaram no mundo. Os que me fizeram chorar, me ensinaram a ser forte, a não desistir e saber enfrentar as intempéries que todo mundo encontra pelo caminho. E como eu aprendi...
E agora, chegou o tempo da calmaria. Aqueles dias que se tornam longos porque são sempre quase que só meus. Meus filhos já foram cuidar da vida, viver os seus sonhos como eu... E me restaram as paredes vazias, os quartos calados, a cozinha limpinha na maioria das vezes, porque nem sempre tenho para quem cozinhar... Mas quando vêm, tudo ganha vida novamente, as paredes ganham vida e muitas vezes, rabiscos... Os quartos se desorganizam, a coisas saem tudo do lugar. E a cozinha, ah... essa é que tem mais turbulência. Pão de queijo que não acaba mais, doce de todo jeito, cheiro de bolo sempre no ar. E nos almoços, haja tempero para tanta comida mineira. É a minha turma chegando, meus filhos e meus netinhos passando pelos mesmos caminhos que eu passei.
E eu, agora olhando no espelho, sei que um dia ele não verá mais minha imagem, serei só lembrança ou um sorriso em algum porta retrato. Mas serei saudade. Sei que serei porque sei que sou presença, perto ou longe, eu sempre carrego os meus, se não nos braços, ao menos no coração. E como é bom dividir com os filhos, os netinhos que me deram, esses que ficam esticando o narizinho para adivinhar o cheiro do que estou cozinhando para fazer surpresas... E minha vida é a mais feliz de todas realizando os pequenos desejos, ajeitando o cantinho de cada um para serem se sentirem bem ao meu lado. Coração de avó é sem medida, tem amor e açúcar em exagero. E assim eu sou...
Por isso não me importam os fios brancos, as rugas acentuadas, a face distorcida diante do espelho. Por trás desse semblante triste, desse corpo que já começa a ter ar de cansaço existe uma mulher infinitamente feliz e duplamente realizada. Primeiro, por ser mãe e agora avó. Oxalá esse espelho me encontre daqui a uns anos, bem mais velhinha e franzina, mas com os olhos brilhantes de uma bisavó... Quem sabe?