KUÑA PORÃ CHE ROHAYHU - Nossos sonhos guaranis.
Eu nasci no sul do Mato Grosso antigo. O que isso significa?
Significa que em 11 de outubro de 1977 eu deixei de viver no sul do Mato Grosso e passei a morar no Mato Grosso do Sul, sem me mover um metro sequer. Foi a chamada "divisão" do Estado, tão almejada pelo sul do Mato Grosso, com uma luta histórica que quase se concretizou em 1932. Na Revolução Constitucionalista, quando estivemos ao lado de São Paulo, passamos a nos chamar Estado de Maracaju por breves meses, de 10 de julho a 2 de outubro de 1932.
O fato é que, culturalmente, o sul do Mato Grosso, Estado de Maracaju e, agora, Mato Grosso do Sul, era muito diferente do norte do Estado e sua bela capital, Cuiabá.
O Sul, colonizado por mineiros, paulistas e gaúchos, estes vindos das suas guerras intestinas no Rio Grande do Sul, tinha e tem, sempre terá, forte influência da vizinha República guarani, o Paraguai.
Parte de nossas terras é oriunda das disputas portuguesas e espanholas. A questão é antiga e remonta ao Tratado de Tordesilhas. Fez-se o Tratado, mas não se concordou com a posição do meridiano. Os paulistas, descendo pelo rio Tietê, não tardaram em contatar os núcleos de colonização espanhola.
As "entradas" paulistas e, posteriormente, as "monções", motivadas pelo ouro cuiabano, ampliavam as regiões de disputa. Finalmente, pelo Tratado de Madrid (1750) estabeleceu-se a pretensão da delimitação das fronteiras pela ocupação. Atendeu-se ao princípio do ut possidetis iuris, premiando-se a posse e levando o Império Brasileiro a incentivar a ocupação pelos colonizadores brasileiros no território.
Há um ótimo livro, de Samuel Xavier Medeiros, "Senhorinha Barbosa Lopes", que nos situa de forma bem interessante, contando a história daquela que foi esposa do Guia Lopes da Laguna.
Depois veio a Guerra Sanguinária, chamada no Brasil de "Guerra do Paraguai" e, no país vizinho, de "Guerra da Tríplice Aliança", epitetada por Júlio José Chiavenato de "Genocídio americano", título de sua obra publicada na década de 1970.
Nessa guerra a população paraguaia foi enormemente reduzida, especialmente a masculina, e, findado o conflito, a vida continuou, o contato fronteiriço prosperou, os povos paraguaio e brasileiro souberam conviver e perdoar-se das consequências da imperdoável guerra.
Ainda nos meus quatorze anos, em plena adolescência, vendi livros na fronteira do rio Apa, as belas Bela Vista e Bella Vista Norte. Ali, visitando um antigo cemitério, mostrou-me o coveiro um saquinho com balas de fuzil, dizendo ele serem oriundas da Batalha de Nhandipá (11/05/1867), um dos grandes entreveros da Retirada da Laguna.
Enfim, apesar de tudo isso, nossa admiração pelo Paraguai e, especialmente por seu povo, levou-nos a recebê-los de braços abertos, pessoas e cultura. Nosso prato: "a sopa paraguaia". Nosso sabor: "a chipa paraguaia". Nossa música: "o chamamé". Nossa bebida: "o tereré". Nossa torcida nas copas do mundo, fora os jogos do Brasil: "sempre pelo Paraguai". Nossas famílias: "quase todas com algum parente paraguaio". Tive a alegria de gozar da companhia do meu tio Tertuliano Amarilha, poeta brasileiro e guarani, que sempre me estimulou no caminho das letras.
Assim, temos nossos parentes Amarillas ou Amarilhas, Ortiz, Cafure, Benítez. Muitos nomes, muitos!
Tudo isso para dizer que, ali pelos meus dezoito anos, tive o especial interesse em agradar as moças paraguaias. Era necessário conhecer um mínimo da belíssima lingua guarani. Dessa forma, sempre havia o pedido para que nos ensinassem frases que facilitassem a comunicação.
Era imprescindível saber que "kuña porã" (cunhá) é mulher linda, e, "che rohayhu" (eu te amo).
Assim, íamos coletando as frases, para dizer que o amor está acima da história e do passado, está acima de raças e nacionalidades: "Aikosénte yvytúrõ ha nde ypýrupi ahasakuévo vevuimi roipejukuévo, tahetũ pe nde syva. Quisera ser como o vento e ao passar ao teu lado, ao soprar suavemente, tua testa, beijar-te" - Gumercindo Ayala Aquino.
Ela era linda. Fui apresentado por uma amiga. Ela tinha a pele muito clara, os dentes brancos e perfeitos, aquele olhar de olhos miúdos, o leve toque guarani, os cabelos bem lisos e compridos, meiga e carinhosa. A dificuldade imensa em pronunciar o "z" português dava-me a certeza de que era uma belíssima garota com la sangre guarani. Nos meus dezoito anos, aqueles dezoitos anos, apaixonei-me e ela se foi embora, quem sabe para Assunción ou outra linda cidade daquelas terras férteis, matas fechadas, cobertas pelas poesias dedicadas às "kunhataí porã" (moça linda).
Onde estaria a minha kunhataí porã? Recordei-me da belíssima música de Javier Solis:
Recuerdos de Ipacaray
Una noche tibia nos conocimos
Junto al lago azul de Ipacaraí
Tu cantabas triste por el camino
Viejas melodías en guaraní
Y con el embrujo de tus canciones
Iba renaciendo tu amor en mí
Y en la noche hermosa de plenilunio
De tu blanca mano sentí el calor
Y con tus ojazos me dio el amor
Dónde estás ahora cuñataí
Que tu suave canto no llega a mí
Dónde estás ahora
Mi ser te añora con frenesí
Todo te recuerda mi dulce amor junto
Al lago azul de Ipacaraí
Todo te recuerda, mi voz te llama cuñataí
O sonho de todo garoto sul-mato-grossense, fronteiriço entre duas nações maravilhosas, onde, no dizer do nosso grande poeta Almir Sater, "o Brasil foi Paraguai"(*), é que, quando disser à linda kunhataí: CHE ROHAYHU! Ouça o suave murmúrio de uma voz guarani:
- Che aveí! (Eu também).
(*) A música "Sonhos Guaranís".
"Mato Grosso encerra em sua própria terra sonhos guaranis
Por campos e serras a história enterra uma só raiz
Que aflora nas emoções e o tempo faz cicatriz
Em mil canções lembrando o que não se diz
Mato Grosso espera, esquecer quisera o som dos fuzis
Se não fosse a guerra, quem sabe hoje era um outro país
Amante das tradições de que me fiz aprendiz
Por mil paixões podendo morrer feliz
Cego é o coração que trai
Aquela voz primeira que de dentro sai
E às vezes me deixa assim
Ao revelar que eu vim
Da fronteira onde o Brasil foi Paraguai
E às vezes me deixa assim
Ao revelar que eu vim
Da fronteira onde o Brasil foi Paraguai."