Desconfiar não decepciona
Por trás da confiança, há alguns demônios... Nunca confiemos nas pessoas ao ponto em que não possamos, alguma vez, desconfiar delas, para que se evite decepção... Contudo, de modo generalizado, adotemos, por princípio, atribuir certa confiança ao ser humano. Seria este um meio para suportarmos conviver na nossa contraditória humanidade, tão cheia de paixões insaciáveis e incuráveis, que a própria Filosofia, desde os antigos, não as satisfez. Também assim sucede com a Medicina, que tem melhorado, tecnologicamente avançado, realizado transplantes, mas ainda não chegou a curar todos os males do corpo. Espero e aposto num dia, em que cuidar de um câncer será uma frívola receita como a do farmacêutico Joel, em Pilar, nos idos de 1950, que curava qualquer pereba.
Nesse sentido, se a ciência esbarra em seus limites, a Filosofia, que a fundamenta, por própria convicção, incita-nos à dúvida, como se fosse uma partida à busca. Descartes, corajosamente, em seu Discurso do Método, abnega o que aprendeu, comparando esses conhecimentos a edificações mal construídas e necessitando de destruí-las para reconstruí-las sobre o princípio da dúvida. Mesmo considerando esse rompimento o início da Filosofia Moderna, a Filosofia Antiga já nos incitava a isso, assim deve ela subsistir, no mínimo como colunas ou fundamentos da nova construção. Confiar é fundamental para que se suporte desconfiar. Enfim, confiar constrange menos do que desconfiar. A confiança nos sugere, no dia a dia, várias e relativas concepções.
Em obra de Shakespeare, Ricardo III, último rei da Inglaterra (1485) da casa Plantagenet, sempre confiou no seu poder, nas suas tropas e em seus asseclas. Mas, não os tratando com compensações e favores, um dia, se viu sozinho, e por acréscimo cercado por inimigos. Então, chegou à conclusão de que deveria fugir, do próprio reino a terras alheias e desconhecidas. E, de joelho, barganhou: “Meu reino por um cavalo”. E assim, numa hora de vital aperto, confiou a um desconhecido palafrém sua salvação. Nem Shakespeare o pôs na titubeação: Confiar ou não confiar? Constatam-se, enfim, várias e relativas formas de confiar, de acreditar.
A confiança, historicamente, é conceituada também pelo sinônimo de fé, de acreditar como se fosse essencialmente verdade. No hebraico, emunah é tudo aquilo que Deus disse ou teria dito; é a palavra que expressa o que se deve dizer, falar ou proclamar. Em Habacuc (2.4), explicita-se o bem que se obterá dessa confiança: “Eis o soberbo! A sua alma não é reta nele; mas o justo pela sua fé (emunah) viverá.” Consta emunah nas classificações de verdade, como figuram veritas, do latim; e aletheia, do grego. Todas as três em epistemologia diversificada de significação de adequação da coisa à sentença; de busca, e a de apropriar à emunah o caráter de fé, de confiança e até, no plano religioso, o de convicções dogmáticas.
Fiquemos, leitor, de comparar e escolher, em qual circunstância um dos provérbios carece ser usado: “Confiança é bom, mas, sob controle, é melhor”. Ou “Quem não confia não é de confiar”... Finalmente, desconfiar não decepciona.