Branco

Hoje vinha no ônibus e uma menininha com duas janelinhas nos dentes da frente saltava de cadeira em cadeira. Fiquei observando-a e teve uma hora até em que ela me olhou de cima abaixo. Fiquei numa dúvida, me perguntando se ela olhava pra mim com julgamento, olhando os meus pezinhos disformes, mas não, isso é coisa de adulto. Os adultos que faziam isso olhavam com pesar, pena.

O espanto da criança não é de espanto, é da curiosidade que faz brilhar os olhos pelo que ainda não sabe.

Tenho sonhado com frequência, tenho pensado com frequência. Agora menos, menos. O voltar das aulas impõe um tempo bem menos elástico, uma fadiga das coisas que me obriga a estar preso no presente pra não me perder, pra não me desviar e acabar caindo no limbo do meu teto branco. Mas é tarefa que demanda disciplina e esforço. Nunca há um momentinho em que tudo está silêncio. Mentira, tem sim. Meu silêncio preferido do dia é do que se ouve de longe, do cheiro.

Tá pra nascer coisa que me tira mais do prumo, ache mais passagem, revele sinal de estadia dos teus cabelos e corpo, mas quando procurado, é nada mais que um índice, um intangível.

Tenho que confiar na memória, tenho que me apoiar não no que vejo, nem sinto, nem penso. Não, pensando bem, até a memória, até ela me traiu. É possível colocar algodão e estofo em momentos, encher de detalheszinhos, anima e glitter, fazer ser coisas que nunca nem foram.

O que eu faço, então?

Todas essas coisas são e sempre vão ser, estranhos de longa data.

Mais do que o cheiro vem também a voz.

Outro dia ouvi dito por Juca de Oliveira, num texto de Zélia Duncan que "O luthier da voz é o coração" Pois sendo verdade então, sua concepção veio das mãos mais nobres, que colocaram com cuidado o coração mais grande que encontraram. Sim, "mais grande" aqui cabe usar, deixem que reclamem os gramáticos e os linguistas. Minha tarefa é de tentar fugir desse tédio.

Já devo ter contado as divisórias do foro mais do que se é possível. Fiquei pensando naqueles quartos acochoados que se via nos filmes. Completamente brancos, sem quinas e com paredes almofadadas. Geralmente os hóspedes vestindo um look breguissimo e nada ergonômico (camisa de força), que triste não é? Mas não sei, ao mesmo tempo é de uma paz interessante. Ter o vazio. O branco não acometido de surpresa em você quando menos espera, mas sim imposto. Um não pensamento obrigatório.

Estou assim, variando entre a criança que vai pra lá e pra cá, passarinhando, rindo do barulho do motor, do tamanho alto demais do passageiro, intrigando-se com o verde da folha que é diferente do verde do arbusto e do sinal e a descrição de Vinícius sobre o fazer da crônica.

"O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração – e nada."

E nada.