AS EPILEPSIAS E OS TERREMOTOS

 

     Estava no sopé da Cordilheira. A mulher chilena me contava sobre terremotos com o mesmo entusiasmo que via refletido nos meus olhos, mas tentava inspirar confiança, tranquilidade.

     - Só vi um terremoto em toda a minha vida, os outros foram tremores, disse-me ela.

     O Chile é lindo, com a Cordilheira ao Leste e o Pacífico ao Oeste, terras muito frias e gelo ao Sul e o enorme deserto do Atacama ao Norte.

     Contrastes! Vulcões com neve e terra "gris", os bosques verdes cantados por Pablo Neruda, as macieiras e os pessegueiros, a limpeza das ruas, a cortesia do povo, a sensação de estar num dos quatro cantos do mundo.

     A alma chilena também é linda. Não foi demais a premiação com o Nobel de Literatura concedida a Neruda e Gabriela Mistral, nem é estranho cantar as letras de Violeta Parra.

     Gostaria de conhecer mais, provar mais, andar mais como andei em meio ao povo, saber mais da história e das origens, dos espanhóis e dos araucanos. Como gostaria de estar uma tarde ao menos, só, sem ninguém, imerso em um bosque chileno como os que vi em Puerto Mont. Neruda sabia e disse:

"Quien no conoce el bosque chileno, no conoce este planeta".

    Ali falávamos de terremotos. Como uma terra tão formosa, habitada por pessoas tão afáveis, sofreria a convulsão terrível de ver as rochas em levante, como ondas do mar, as plantações de maçãs movendo-se como um exército enfileirado e os donos da terra sem ter pés que pisem e bancos para sentar?

      A beleza inegável, física e moral, daquela terra não a isenta da dor de um terremoto. A senhora me contava sem temores, algo anormal normal.

     A epilepsia da Terra, quando as forças mais tremendas de um organismo se movem de forma incontrolável, sem comando e para nada, agredindo-se a si próprio, com descargas de eletricidade tremendas no cérebro indefeso, criado para as mais profundas reflexões, para a elaboração das teses, para o conhecimento do belo e da composição dos aromas.

     Num momento, quando tudo é sereno, um piscar tenebroso avisa o início da grande luta de si contra si mesmo - é a aura epilética - o debater desordenado, a convulsão da vida e a respiração ofegante, faltante, a perda dos sentidos.

     Num só momento, tenebroso e rápido, quando tudo poderia ser sonho, desperta a força irreprimível e domina os músculos, fazendo-nos lutar por ninguém e por mais nada. Num momento, porque, logo após, tudo se esvai.

     Depois, o silêncio, os espasmos, a impotência, a solidão, a vergonha, uma espécie de derrota humilhante com a volta à consciência. Perde-se a alegria, o aroma dos bosques, a maciez do Copihue, o olhar manso do gado leiteiro sob a planície ao pé da imponente serra.

     Talvez, as águas do nosso Maipo estejam lentas, vagarosas.

     Uma linda nação pode ser transtornada por um terremoto e homens por uma doença, mas a chilena me contava de forma alegre e corajosa, animosa, por assim dizer.

     Ela me falava claramente e para todos nós que as epilepsias da vida, se bem que incontroláveis, os tremores e os terremotos, não podem nos tornar seres fracos e abatidos.

     A cada crise o Chile se tornou mais lindo e a cada convulsão nos tornamos mais "gente".