Ahhhhhhh, Uhhhhhhh, Uhhhhhhh, Uhhhhhhh!
Quando a Nenê e o Ricardo casaram, foram morar com os pais dela, na edícula no fundo da casa deles.
O Seu Joaquim e a Dona Neuza bancaram a reforma: cerâmica e azulejo, instalação elétrica e hidráulica, pintura, tudo novinho em folha!
- Caramba, Seu Joaquim! Nem precisava dar um talento desse! Era só pra gente escapar de pagar aluguel até conseguir juntar o suficiente pra dar entrada na nossa casa...
Acabou que ficaram vinte anos por lá mesmo. Sempre se deram muito bem, o Ricardo sempre foi tratado como um filho por eles. Um privilégio ganhar de presente da vida mais um pai e mais uma mãe.
Aí vieram as meninas. Muito mais tranquilo e saudável serem cuidadas pelo vô e pela vó. Valor da conta: inestimável! Possível ser pago só com gratidão, respeito e admiração, na mesma proporção do amor e do afeto envolvidos.
E por passar praticamente a semana toda com os sogros, virou tradição o almoço de sábado na casa dos pais do Ricardo. Mas com horário estabelecido pra voltar, porque às quatro da tarde o Seu Joaquim já tava sentado na área da frente da casa, pronto pra iniciar os trabalhos, só esperando o Ricardo chegar...
E quando fazia aquele calor típico da nossa região? Aquele mesmo, de mudar o nome da cidade pra “Prudentexas”. Era refrescar com um belo banho de mangueira e sentar sem se enxugar, deixando a secagem por conta da brisa do fim da tarde, pra tomar uma naquele grau, começando a congelar, cristalizando...
- “Craquelando!”
- Ô, coisa boa!
E o papo ia longe. Na época, era possível conversar normalmente, sem ter que estourar a garganta. A avenida era uma calmaria, ainda tinha um trecho que não tinha sido asfaltado. Todo mundo que ia pra Zona Norte pegava outro caminho pra evitar o poeirão.
Nem se cogitava da criação de novos bairros naquela região, tava tudo original, do jeito que a natureza havia feito. A real é que passava mais gente a pé do que de carro.
Hoje tá um caos! Os conjuntos habitacionais abrigam mais de vinte mil moradores e a avenida, totalmente pavimentada, é a principal ligação com o centro da cidade.
É tráfego pesado, sujo e barulhento vinte e quatro horas por dia, de segunda a domingo. O Seu Joaquim até rebatizou o logradouro: “Rodovia Ibrain Nobre”.
Então melhor voltar no tempo uns quinze anos, quando tinha mais bicho que gente transitando pela via. Visitas das mais inusitadas. Até teiú amanhecia na garagem.
Passarinhada de toda espécie, cor e canto. Vira e mexe pintava até tucano. Teve um pica-pau que todo dia cismava de bicar o postinho do padrão de energia. Parecia que tava enviando código morse. O “Telefonista”.
Mas teve um verão em que apareceu uma atração extraordinária: uma família de Urutaus! Pai, mãe e filhote. Encontraram a árvore ideal pra se camuflarem, bem na frente da casa do Seu Joaquim.
Pensa num pássaro diferentão: passa o dia inteiro imóvel, com o bico pra cima, nem abre os olhos. Se assemelha tanto com a árvore em que se abriga, que facilmente se confunde, ou melhor, se funde - sem exagero de expressão - com seus galhos. Mãe e filhote ficavam juntos, colados um no outro. O pai ficava mais acima, em posição de vigilância.
À noite, o bicho pega! Literalmente!
A gente só consegue ver o vulto no voo, cruzando na horizontal, vai-e-vem, a área iluminada pelo poste da ilha da avenida, logo ao lado da árvore, se banqueteando com os insetos atraídos pela luminosidade.
E mais tarde, quando vem chegando a madrugada, o canto assustador:
- Ahhhhhhh, Uhhhhhhh, Uhhhhhhh, Uhhhhhhh!
Tem gente que morre de medo. E, pra falar a verdade, bonito não é mesmo, não! Por isso, rotularam o pobrezinho de “Ave de Mau Agouro”, "Ave Fantasma", em tupi-guarani.
Se o Urutau cantou, coisa ruim vai acontecer! Mais um pro time dos injustiçados! Pode sentar ali do lado da coruja, do corvo, só não come a mariposa e cuidado com o gato preto!
Mas pro Seu Joaquim, pro Ricardo e pra toda a família, os passarinhos eram só vizinhos ilustres e exóticos, que tinham como única preocupação cuidar da própria vida, mas que sem querer, nem perceber, todo sábado proporcionavam momentos de contemplação, reflexão e entretenimento pra quem sentasse ali na frente.
Sabe como é, né? A gente se afeiçoa, cria vínculo, da nome e tudo: a “Ura”, o “Tau” e o “Tauzinho” já tavam morando de pantufas no coraçãozinho de todo mundo.
Até que sobreveio o infortúnio.
Sábado. Finalzinho da tarde. Quase anoitecendo. O gavião pousou sobre a lâmpada do poste. Escaneou toda a área. Focou no movimento involuntário. Um vacilo mínimo, que entregou o disfarce. Foi o suficiente pra atrair o caçador.
Voou na vertical, alto, pra ter mais velocidade na descida. Pra impossibilitar qualquer reação, pra anular qualquer defesa. Pra ser fatal. Abriu as asas pra freada instantânea, como fazem os caças pra pousar nos porta-aviões. Atacou com as garras. Com a esquerda, jogou a “Ura” longe e, com a direita, pegou o “Tauzinho”. E levou.
Tudo muito rápido demais. Quando o “Tau” tentou voar atrás, já era tarde. Voltou, pousou junto da “Ura”. Pra gritar pro mundo, com ela, a tristeza da perda.
- Ahhhhhhh, Uhhhhhhh, Uhhhhhhh, Uhhhhhhh!
- Rapaz, nunca vi dois urutaus cantarem juntos em plena luz do dia!
- Tão cantando não, Ricardo!
- Bora pra dentro, Seu Joaquim?
E o sábado acabou mais cedo e muito, muito doído...
Impossível não linkar Pena Branca e Xavantinho:
"A tua sardade corta como aço de navaia
O coração fica aflito, bate uma, a outra faia
E os zóio se enche d’água
Que até as vista se atrapaia, ia, ia..."
Bom, pra quem tiver com a vista atrapalhada, arrependido de ter lido essa tragédia, xingando quem escreveu essa desgrameira toda, muita calma nessa hora...
Um minuto de respiração lenta, um lenço, um copo d’água e paz no coração, que tem mais pela frente!
O tempo passou, o ano voou...
E chegou o verão de novo!
E a sacrificante rotina de todo sábado: almoçar na casa dos pais do Ricardo e, pontualmente às dezesseis horas - banho de mangueira devidamente executado - sentar pra tomar uma gelada com o Seu Joaquim.
- Vai indo lá, Ricardo! Pega as cadeiras pra nós! Tô acabando de torrar o amendoim pra gente petiscar...
Pensa numa salmorinha caprichada: amendoim sequinho, salgadinho, torradinho, no ponto, perfeito!
- Corre aqui, Seu Joaquim! O senhor não vai acreditar!
- Não é possível! Não pode ser! Será que são eles?
- Se não forem, tâmo diante de uma tremenda coincidência!
A família dos urutaus tava de volta. A "Ura", o "Tau" e um novo "Tauzinho". Na mesma árvore, nos mesmos galhos, nas mesmas posições: mãe e filhote juntos, pai acima, na guarita.
Mistura de sentimentos. Alegria e apreensão. Felicidade por terem voltado e medo do gavião voltar também.
- Esse verão vai ser tenso...
- Se depender de mim, não vai ser não!
Seu Joaquim correu pra dentro de casa. Voltou ligeiro, trazendo uma caixa de sapato.
- Que é que tem aí, seu Joaquim?
- Meu estilingue e minhas birocas! Do tempo da roça, de quando carne de caça era a única que a gente tinha pra comer. Agora vou usar pra defender os passarinhos daquele danado!
- Seu Joaquim, o senhor acha mesmo que consegue acertar o gavião em pleno voo? O bicho vem que nem um raio! É impossível impedir o ataque!
- Impossível? Se ele aparecer, derrubo ele!
E todo sábado, o Seu Joaquim deixava o estilingue e o saquinho de birocas ali no jeito, pra agir de pronto e evitar o pior.
- Seu Joaquim, de que adianta montar guarda só no sábado? E os outros dias? Não da pra fazer vigilância em tempo integral!
- Eu sei, se acontecer em outro dia, em outra hora, paciência. Mas enquanto eu tô aqui, tô preparado pra não deixar acontecer.
E não é que aconteceu mesmo?
Sábado. Finalzinho de tarde. Quase anoitecendo. O gavião pousou sobre a lâmpada do poste. Escaneou a área. Dessa vez, a família Urutau não deu pala. Permaneceram rígidos.
Mesmo assim, o gavião repetiu o protocolo de ataque. Será que era ele? Será que lembrou da família Urutau, no mesmo lugar de um ano atrás?
Seu Joaquim pegou o estilingue. Armou. Esticou a borracha. Verdadeiro sniper, só esperando o melhor momento pro disparo.
O gavião desceu acelerado, abriu as asas pra frear e atacar com as garras.
Seu Joaquim atirou. Errou. Baixou a cabeça, não quis ver tudo de novo...
Mas quem não viu foi o gavião. Não viu de onde veio o tranco. Foi o "Tau". Se jogou pra salvar a família. Deu uma banda de lateral no gavião, que foi direto no poste, num impacto sabe-se lá a quantos metros por segundo. Caiu e ficou.
O "Tau" também foi pro chão. Mas levantou, bem mais ou menos, bem tonto, ficou em pé com dificuldade. Devia ter se estrumbicado todo com a pancada. Testou as asas, deu o impulso, voou. Voltou pra vigilância.
A "Ura" e o "Tauzinho" permaneceram estáticos, seguindo o procedimento padrão de defesa da espécie. Mais tarde, quando escureceu, cantaram. Como nunca: com intensidade, com constância, com plenitude...
O "Tau" foi o "Tal". Contrariou o manual, saiu da letargia, quebrou a inércia, soltou as amarras. Aprendeu com o passado, foi pra ação, transgrediu, transcendeu. Mudou a história!
E quem passou pela avenida naquela hora, viu dois malucos pulando, abraçados, rindo e chorando ao mesmo tempo, chutando latinhas de cerveja. Comemorando a zebra, a invertida nunca imaginada.
Celebrando a evolução. Testemunhando a revolução. E aprendendo, com um passarinho, o que é a vida...
- Ahhhhhhh! Uhhhhhhh! Uhhhhhhh! Uhhhhhhh!