É QUE EU SOU UM PECUARISTA ROMÂNTICO
- Meu pai é pecuarista.
- Ah, e como é a fazenda e o gado dele?
- É gado confinado.
- Hummm, qual a raça que ele cria lá?
- Semepol.
- Jurava que Semepol fosse remédio, um xarope para tosse forte. Mas assim não quero ser pecuarista, nem confinamento e nem semepol.
- Por que?
- Ah, é porque eu sou um pecuarista romântico. Aliás, nem sou pecuarista, não tenho um boi para contar uma história e nem para ouvir. Sabe o ditado: "estória para boi dormir?" Pois é, não tenho nenhum boi para ouvir minhas histórias, mas se eu fosse, seria um pecuarista romântico.
- Mas o que é "pecuarista romântico"?
- Ah, pecuarista romântico é do tempo em que, pra ter bezerro, o touro e a vaca namoravam. Hoje os bezerrinhos já vêm nos botijões de nitrogênio, a vaca nem viu o touro. Pecuarista romântico é o fazendeiro que cria o gado solto no pasto, pelas grotas, virando bagual. A gente dá um salzinho de vez em quando. Um touro para cada vinte e cinco vacas.
- Sabe aquele gado gir? Cupim e chifres grandes, barbelas enormes, colorido. Esse é o gado, o meu gado, porque era o gado do meu avô. Lindos, touros, vacas e bezerros. A gente amanhece cedo pra tirar um leitinho, nem muito como se a vaca fosse holandesa e nem pouco como se fosse nelore. Depois faz um requeijão na panela, fica aquela bola cheia de gostosura e gordura, com um cafezinho na caneca, fogão a lenha, galinhas no terreiro, monjolo descascando o arroz, bananeiras, paiol cheio de espigas de milho, muito barro na botina, uma enxada virada pra cima e semienterrada para limpar as botas.
Lugar perigoso era o paiol, com aquele mundaréu de palha seca e, o susto, uma cascavel de sete guizos. Uma vez meu avô matou uma, com um smith & wesson 38, cano longo. Ficou mirando e deu um tiro, bem no meio da cabeça. Eu ali assistindo. Meu avô era o maior atirador do Mato Grosso, eu tinha certeza disso. Era mesmo, não duvide, um camarada acertar no meio da cabeça da cascavel, só ele.
- Que mais?
- Casa de madeira, rede na área da casa, bica d'água, um córrego de águas limpas, cheiro de chuva, pamonha no tacho, rapadura, pamonha com rapadura, pamonha com rapadura e café, doce de leite, angu na panela, muitos pássaros, canto de seriemas, cachorro campeiro vira-lata. É isso, um pecuarista romântico.
Aí falei para o garoto que já estava com os olhos arregalados sem entender como pode uma fazenda sem Hilux ou Amarok do ano, sem plantadeiras e colheitadeiras enormes, com silos e toda essa parafernália do "agronegócio é pop":
- Meu avô tinha gado gir e falava que o que atrapalhava a pecuária era o touro.
- Como assim? Perguntou mais intrigado.
- É que quando você ia campear o gado, lá estava o touro para encher o saco; quando você ia fechar o gado no mangueiro para marcar, curar, essas coisas, lá estava o touro na porteira cercando todo mundo.
- E você já viu isso?
- Já, meu avô já era morto, eu tinha um pequeno sítio, algumas vacas e um touro Gir. Corre daqui, corre de lá, e o gado não entrava. Dá-lhe umas varadas e o bicho bufava e não saia.
- Sai, miserável! E nada, o bitelo ficava ali, atrapalhando.
Lembrei do meu avô: "o que atrapalha a pecuária é o touro!"
Pois é, sou um pecuarista romântico. Foi tão bom aquele tempo. Hoje nem touro a gente vê.