CRONICA DA PANDEMIA
A ORELHA
A orelha é indispensável à beleza, fora sua função natural, seja lá qual for a utilidade da protuberância anatômica. Como se sabe, a protetora da caverna auricular é o receptáculo dos sons. Não à toa os telefones originais tinham um componente que lembra o aparelho humano.
Tão útil para a mulher pendurar ou espetar brincos, pode ser encoberta com os próprios cabelos se o formato não agradar à dona. Mas é lisonja dizer que ela tem orelhas perfeitas, simétricas; não muito compridas nem muito largas, nem profundas; muito menos abertas e tão redondas como uma flor - por exemplo, a “orelha de onça”. Tão importante para qualquer ser vivo, a orelha integra-se ainda a todo ser real inspirado em seres extraterrestres, com destaque para os marcianos, cujas orelhas ora são expressivas ora quase inexistentes, parecendo que não fazem a menor diferença para eles.
Mas não se concebem monstro e sinistros seres mitológicos sem orelha. São também indispensáveis aos estímulos artísticos e até às inspirações religiosas. Nesses campos, as mais famosas são as de Vincent van Gogh e a do soldado romano de quem Pedro sacou-lhe a peça anatômica com um golpe, no Jardim das Oliveiras, ao defender Jesus Cristo, muito embora o apóstolo mais destacado dessa história tenha feito “ouvidos moucos” quando o acusaram de ser um deles. Negou conhecer o Mestre três vezes. É a mais famosa história de surdez. No caso do pintor holandês, não se sabe exatamente qual a implicância dele com a sua orelha. Ou teria sido questão com a própria vida?
A orelha é um problema quando vira motivo de bulling na escola, no jogo de futebol. Pode ser incômoda, dependendo do tamanho: se muito grande, o sujeito é “Orelhudo”; inversamente pequena, é o “Orelinha”. Muito feia, o cara é um “Orelha do ET”, “Extraterrestre” ou simplesmente “Marciano” – uma só palavra é suficiente, pois apelido com duas palavras não pega fácil, fosse o caso de um apelido duplo, um para cada orelha.
Qualquer que seja apelido do essencial aparelho, nunca a orelha foi tão útil nestes tempos de pandemia. Se o ser humano não a tivesse, seria sacrifício maior usar a máscara protetora; não haveria onde engatá-la. De qualquer forma, usam-se essas que se amarram os cordões atrás da cabeça. Deve-se agradecer por se ter orelha como facilitador do combate ao coronavírus, muito embora alguns se façam de surdos. Uns acreditam que a orelha pode não servir para nada. Outros a exibe com ostentação, como os índios, que instalam brincos ou simples aros de caroço de tucumã; outros a incrustam com minúsculos piercings de ouro ou prata.
Se a orelha não existisse, talvez um simples buraco nas frontes não fosse suficiente para habilitar a faculdade da audição. Aí, seria um problema duplo, pois não teríamos como engatar outro acessório comum destes tempos: o headphone, por exemplo, que eu, particularmente, nunca uso, não por falta de orelha, mas por incomodar a reverberação do som nos meus tímpanos já afetados pela idade.
A questão aqui é a orelha propriamente dita, entretanto, cujo volume, para muita gente, causa um incômodo capaz de desconcertar a pessoa se for conhecida por alcunha composta, de qualquer forma, por mais de uma palavra: “Orelha de abano”, “Zé orelha”, “Orelha de macaco”, “Orelha de marciano”, “Orelha de extraterrestre”. Variações do mesmo tom, mas não menos indiscreto apelido. Aí, é preferível que o cara seja cem por cento surdo para não dar bola à orelha que Deus lhe deu.
10/5/2020