Crônicas de Pai para Filho - Despedida do Barão
Subi a escada, abri a porta e entrei no velório.
Sou uma figura conhecida em velórios e enterros. Sou afeito a despedidas. Acredito que ninguém deveria partir sem que fossem prestados os devidos respeitos.
Já fui a velórios com flores, violino, corais, urnas pomposas, cujo defunto não se despediu de quase ninguém. Podia-se dizer que nem mesmo havia defunto, tal a falta de convidados. Eram casos de desomenagens póstumas.
Havia velórios desfloridos, sem padre, sem eira nem beira. Apenas lágrimas.
Lágrima era uma convidada caprichosa. Em alguns enterros, ela comparecia aos montes, em outros sequer dava o ar de sua graça.
Viúvas e viúvos, órfãos, animais para adoção, roupas, móveis, imóveis, pequenos objetos pessoais sem valor (a não ser para quem os deixou), era tudo que sobrava para o dia seguinte ao enterro.
Isso, eu sabia e conhecia bem. Todos estavam partindo e eu ficando, responsável pelas despedidas. Temia um dia, repito, partir sem ter de quem me despedir.
Havia porém, uma raridade em alguns casos. Alguns defuntos deixavam para os herdeiros algo mais valioso que os bens e males financeiros: lembranças.
Aquele velório, em questão, era diferente da maioria, era portanto um dos meus favoritos (se podemos dizer assim). Quando entrei alguns me olharam, outros não. Rostos conhecidos, outros desconhecidos, outros que não queria ter conhecido.
Percebi que ali, havia lembranças.
Descobri o sorriso tímido do mais novo órfão da terra, conversando com amigos de estudo.
Notei a aparência saudável das pessoas que perambulavam ao redor. Pois em outras capelas já me deparei com pessoas mais mortas que os próprios defuntos.
Fui cumprimentando as pessoas pelo caminho, enquanto fingia não ver antigos desafetos.
Cheguei ao caixão. Ali estava o corpo deitado, em posição de sentido. Mãos sobre o peito, uma sobre a outra. Me veio a cabeça de que não era uma posição confortável para se passar a eternidade. Ainda bem que a alma toma outro rumo, para cima ou para baixo.
Parei ao lado da viúva, e as suspeitas foram confirmadas. O defunto fazia parte do seleto grupo dos raros.
O olhar dela não estava vazio, distante ou sequer desvairado. Ternura. Havia ali, ternura, suavidade.
Dei-lhe o abraço.
Abri esta concessão. Não gosto de abraços em geral, mas naquela caso, me era uma pessoa querida: a Baronesa.
Viúvas sempre são um caso complicado. Algumas desfiam um rosal de ofensas ao defunto que passam a falsa impressão de que desejavam a morte do consorte. Alguns consortes com sorte, não morriam, se livravam.
A Baronesa não. Esta se portou como uma verdadeira viúva deve se portar. Olhos levemente umedecidos por lágrimas recatadas. Nada de prantos exagerados e fingidos.
Ali estava o Barão. Altivo, solene.
Bom pai, bom filho, bom esposo, herói, amigo, profissional... Todos estes adjetivos são usados por aqueles que ficam, mesmo que não caibam naquele que está partindo. No caso do Barão, cabiam.
Eu poderia dizer que ao sair, havia uma chuva fina para deixar este texto mais palpável, mas na verdade não lembro.
Conforme o tempo vai passando, minhas memórias vão se tornando mais e mais esmaecidas. Já me despedi de muita gente. Chego a acreditar que minhas histórias são histórias de despedida.
Despeço-me de pessoas, de épocas, de coisas. Despeço-me dos barões.
De você, leitor, despeço-me aqui. E deixo o convite para o meu velório, caso minha partida aconteça antes da sua.