Bolas de gude

Certo dia recebi uma carta de um advogado me convocando a comparecer a uma audiência sobre uma herança que uma de minhas avós recentemente falecida havia deixado para mim. Fiquei muito curioso, pois há muito tempo eu não tinha contato com essa avó. Eu até achava que ela nem se lembrava mais de mim, pois fiquei sabendo que, nos últimos anos de sua vida, ela estava sofrendo de Alzheimer e já não reconhecia quase ninguém.

No dia marcado, acordei bem cedo, tomei um banho e me vesti com a minha melhor roupa. Saí de casa o mais rápido possível para chegar logo ao local da audiência. Estava louco de curiosidade e já não aguentava mais esperar para saber o que eu havia herdado.

Alguns dos meus familiares estavam presentes na audiência, inclusive alguns de quem eu nunca havia nem ouvido falar. Todos estavam tão ansiosos quanto eu, e nervosos, sensação que se tornou ainda mais intensa quando o advogado entrou na sala. Ele trazia uma pasta cheia de documentos, que logo foi pondo em cima da mesa, pedindo para que todos sentássemos. Assim começou a audiência, que durou mais de uma hora, tempo necessário para informar a cada um os bens que lhes eram de direito. Minha parte nessa repartição era o velho sítio no qual passamos nossos melhores momentos em família na minha infância.

Tudo estava exatamente como eu me lembrava, só que mais velho, nada mais tinha o colorido de antes, agora tudo havia se tornado marrom por estar enferrujado e empoeirado. O velho balanço azul de cadeirinha vermelha agora era algo entre o laranja e o marrom. Não resisti e dei um empurrão naquela velha cadeirinha, na qual eu já não caberia mais, e aquelas velhas correntes começaram a ranger, um rangido estridente que ia fundo no ouvido, o tímpano chegava até a doer.

No sótão da antiga casa, perdido em meio a um mundo de antiguidades, algumas já se deteriorando graças a cupins e traças e cobertas por um véu de teia de aranha, me deparei com um velho armário e o abri. Revirando todo aquele amontoado de quinquilharias que se encontravam em seu interior, descobri, lá no fundo, uma caixa já em frangalhos e, ao revistá-la, encontrei uns cacarecos, coisas que há muitos anos não via e das quais nem me lembrava mais. Enquanto explorava o conteúdo desta caixa, eu ia, aos poucos, me recordando de tempos remotos, de fatos por mim vividos porém esquecidos, lembranças que iam surgindo meio embaçadas, mas que aos poucos iam se tornando um pouco mais nítidas.

No meio de tantas lembranças um tanto confusas, encontrei uma pequena bermuda que, pelo estado deplorável em que se encontrava, devia estar perdida há anos. Eu nem sabia se ela era minha ou não. Se fosse, eu nem me lembrava mais que ela existia. Vasculhando seus bolsos, encontrei um pequeno pedaço de papel dobrado que já estava até meio amarelado pela ação do tempo e o desdobrei. Em sua face estava desenhada uma mão de criança, um daqueles desenhos que se faz colocando a mão sobre o papel e contornando com um lápis. Pus minha mão em cima da desenhada para comparar o tamanho. Neste momento, aquela mãozinha criou vida e segurou a minha. Puxei a mão achando que a outra me soltaria, mas ela não me soltou, pelo contrário, me agarrou ainda mais forte. Num segundo puxão que dei, um menino saiu de dentro do pedaço de papel.

Comecei a reparar bem nas suas feições e notei que esse menino era eu, só que várias décadas mais jovem. Ele tirou de um dos bolsos da bermuda algumas bolas de gude. Perguntei se ele queria jogar, mas ele disse que não, que naquelas bolas estavam minhas lembranças, uma em cada bola. Achei que eram poucas bolas para tantas lembranças que se acumulam no decorrer da vida. Ele as pôs na minha mão direita e me disse para segurá-las. Então ele pediu que eu as passasse para a mão esquerda, foi o que fiz. Ao fazê-lo, as bolas foram se duplicando e agora já enchiam as duas mãos. Ele me perguntou se eu ainda achava que elas eram poucas, mas foi uma pergunta retórica, pois ao mesmo tempo ele sacava de seus bolsos mais uma leva dessas bolas, duas mãos cheias para ser mais específico. Ele as pôs sobre a mesa e este simples movimento fez com que a quantidade dobrasse. Então ele me disse para fazer igual, eu fiz e aconteceu exatamente a mesma coisa, elas tocavam a mesa e dobravam em número. Ele já ia tirando mais uma leva de bolas dos bolsos quando eu pedi que parasse, eu já havia entendido e a mesa já estava cheia.

Peguei uma das bolas de gude à esmo, a posicionei em direção à claridade, fechei um olho e com o outro olhei fundo no seu interior. Parecia que estava olhando pelo buraco de uma fechadura, vendo o que acontecia do outro lado da porta. Só que do outro lado estava acontecendo a minha primeira festa de aniversário, a família toda estava presente: pai, mãe, avós, tios, primos. Há muitos anos não via minha família tão unida assim, os laços se desfizeram há bastante tempo, cada um tomou um caminho diferente, cada um foi para um lado totalmente distinto do outro. Não nos víamos nem nos falávamos mais.

Tive vontade de chorar. Fechei os olhos e senti uma lágrima escorrer pela minha bochecha. Uma claridade muito forte começou a incomodar. Abri os olhos e vi que eram os primeiros raios de sol do dia que já estava amanhecendo. Acordei deitado no chão daquele sótão apertando com muita força algumas bolas de gude na minha mão fechada.

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