Normalidades
Como ao digitar uma mensagem de conteúdo arriscado em um aplicativo de mensagem, Eneida fica hesitante ao escrever as frases que vivem discorrendo na sua cabeça, das quais por exemplo, "acho que alguém pegou meu isqueiro"; "tenho de comprar um cesto de roupa"; "essa planta tem algum fim medicinal?"; "preciso dormir direito"; "que vontade de ver alguém"; "amanhã eu trabalho, que merda"; "esse dia não acaba"; "que saudade". Com a barriga roncando de fome ela desbloqueia seu celular, seu salário está atrasado, abre sua carteira e soma 20 reais de troco, já arrependida por ter comprado vinho barato e salgadinho ao invés de um jantar digno. Começa se perguntar se tem energia física para ir pra o seu "segundo trabalho" como ela apelidou seu projeto de pesquisa. "Gosto da correria, mas deveria ser assim todos os dias?", franzindo o cenho e murmurando baixo seus pensamentos, se distraí ao ver o céu azul. É quando vê o ônibus próximo à parada e começar a correr desesperadamente. Como uma oportunidade que só se consegue uma vez, como um bilhete de ouro.
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Virgílio está procurando uma casa para morar. Apesar de viver em uma, ela não é 'dele', não é seu lar de fato. Está em busca, nos sites de compra e venda, classificados de jornais, publicações de estranhos em redes sociais, algum lugar. Um lugar onde ele sinta pertencimento. Ao tirar o sapato, ao tomar um banho, ao deitar na cama.
Hoje ao retonar para a casa em que habita, observou os vizinhos da rua, as pessoas com quem convive, as cadelas que cria, as plantas que estão no quintal, o fogão, a mesa da cozinha, o chuveiro e até o vaso sanitário. Imaginou como seria retornar pra a sua, pensa que teria só um colchão acompanhado de um ventilador de mesa, mas seria seu. Sem tevê ou Wifi, sem um sofá, sem panelas e pratos, sem papel higiênico pois deve ter esquecido de comprar e ainda estará juntando dinheiro pra conseguir o resto. "É complicado isso", ele pensou cansado. "Mas é assim que a vida funciona". "Acho que terei que vender meus livros, alguns itens de valor e abrir mão de pequenos caprichos. Uma pena, pois são poucos os meus caprichos". Ele mora só, dentro de uma casa cheia de gente, que não é sua.
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Ao abrir uma lata de cerveja, Helena se lembra da pergunta que um amigo amigo fez à tarde, "eu sou um velho sem noção?". Ao fazer uso da sinceridade responde que, "a idade não é parâmetro de caráter e personalidade". Por um momento, reflete se foi uma boa réplica pois ele a deixou em silêncio até então. "Acho que nós adultos pensamos demais em sermos adultos", foi a conclusão de Helena, engolindo com um grande gole sua cerveja quente. Ele só tem 28 anos. Se bem que ele só deveria estar querendo ler algumas palavras de auto-afirmação. E ela respondeu com a verdade. As vezes nós adultos só queremos isso também. "Que se foda", concluiu. E com outro gole termina sua cerveja, jogando a lata no lixo.