Com Jackson, calados, conversaríamos
 

         Quando era menino, falava coisas de criança e ouvia assuntos de adultos. Meu próprio pai, Inácio, dizia ter visto alma, perambulando nas salas da casa e indo embora pelo quintal. Pouco variava a alma que ele via. Sempre era uma mulher esguia, alta, vestida de uma túnica comprida e branca, de cabelos também brancos e compridos, andando a passos largos e, vez ou outra, olhando para trás, como se estivesse chamando vivos a fazer-lhe companhia. Não via propriamente, porque espírito apenas se enxerga, avista-se ou se pressente, derrubando alguma caçarola ou abrindo alguma porta. Nunca tive medo dessas almas a mim descritas. Até hoje, pergunto-me por que ele, que contava essas histórias desses aparecimentos, não me apareceria para revê-lo? Desde que se foi, não me deu esse privilégio.
          Semelhante desejo tenho tido em relação aos amigos e amigas que se foram, e mais recentemente ao dileto Jackson Carneiro de Carvalho, com quem prazerosamente conversava, mas que, antes de falecer, durante sua enfermidade, deixou-nos, quinze anos, sem escutá-lo. Olhava-nos, mas permanecia sem pronunciar alguma palavra, tampouco que eu era eu. Implorava eu pelo menos um sorriso, mas ele mantinha seu olhar dirigido ao horizonte dos seus olhos, como se mirasse, filosoficamente, o infinito. E eu ali, bem perto. Esse também parecia o sofrimento de quem o visitasse e esperasse tal reconhecimento. Sempre uma visita de prolongado e ininterrupto silêncio.
          O silêncio em si não é problema, tampouco angustia quem o compreende em profundidade. Assim, torna-se linguagem do mais puro diálogo, e reconfirma, através das experiências vividas, profundas amizades, consequentemente daqueles que se amam. Nessas circunstâncias, o silêncio nos livra da equivocidade da palavra e não conturba à realidade a adequação da verdade. Daí é que respeito a imperturbabilidade do silêncio, pois nele se pondera o valor dos instantes e amadurece o que virá depois, com o advento da palavra. Nesse sentido, mesmo calados, podíamos conversar com Jackson. E entreolhando-nos, talvez, houve conversas. Bastaria recordar os caminhos vividos, nos nossos estudos, nas viagens e nos retornos à Universidade, à educação e à cultura. Foi um mundo que se projetava às estradas a se viverem. Enfim, lamentavelmente, Jackson morreu, lutando, palmo a palmo da sua existência, contra o padecimento do corpo. Epicuro, nos seus jardins filosóficos, predicava que somente a morte nos liberta, definitivamente, das eventuais dores que podemos sofrer em vida. Ainda assegura que a felicidade é a ausência da dor, que podemos gozar em vida.
         Talvez os mortos, já experimentando o silêncio que lhes consagra o paraíso, não desçam ao nosso encontro, por ainda morarmos em cidades, cheias de futilidades, a cada dia, mais barulhentas, constantemente cometendo o crime de matar o silêncio, até mesmo em plena madrugada. Mesmo assim, desejaria conversar, conversar com os mortos; sinceramente não chego a apagar os WhatsApp deles. Sim, eles falariam mais revelações do que as costumeiras infernais zoadas e os banais barulhos. Todavia, aceitaria um reencontro no campo, longe das inúmeras casas e bares; perto do horizonte, em que se enquadrariam água, árvores, animais e pássaros dessa epicurista Mãe Natureza. Desejaria voltar a conversar com Jackson; ele tem poderes para isso, apenas é suficiente reaparecer, e calados, conversaremos. O que poetisa, em  O constante diálogo, Carlos Drummond de Andrade: “Mesmo no silêncio e com o silêncio, dialogamos”.