PESADELO DE UMA NOITE DE PLANTÃO
PESADELO DE UMA NOITE DE PLANTÃO
Mardônio, velho profissional de medicina, estando para completar quarenta anos de formado, ainda se vê compelido a trabalhar como plantonista noturno nas emergências pediátricas de hospitais da rede pública e privada duma grande cidade do nordeste brasileiro e também num hospital de referência dum importante município localizado na região metropolitana desta cidade, visto que ingressou através de concurso público e está aguardando tempo para aposentadoria.
Sexagenário, sente que toda aquela energia da juventude e maturidade que lhe permitia exercer várias atividades ao mesmo tempo, inclusive durante três a quatro noites por semana, já não correspondia à sua vontade de ainda manter a mesma disposição que lhe proporcionou uma vasta experiência laboral em diferentes áreas a saber: pedagógica como professor do ensino médio e superior; administrativa como economiário e médico do trabalho da Caixa Econômica Federal; auditor médico de planos e caixas de assistências; médico pediatra de inúmeras instituições; médico militar da Marinha do Brasil servindo na região amazônica em Navio de Assistência; médico do trabalho em diversas fábricas e empresas particulares da Zona Franca de Manaus e também em Fortaleza e emergencista em prontos socorros de hospitais nas cidades do norte e nordeste como Belém, Manaus, Fortaleza, João Pessoa e Natal.
Atualmente morando em Fortaleza, encontra-se aposentado pela previdência social. Lembra-se de que quando solicitou oficialmente essa condição, o funcionário do INSS que lhe atendeu fez um comentário jocoso: ̈nesses mais de trinta anos trabalhando com benefícios de aposentadorias, nunca atendi uma criatura de Deus que tenha trabalhado tanto na vida¨.
A condição de aposentado não lhe impediu de continuar em atividade, até mesmo pela necessidade financeira que a parca aposentadoria lhe proporciona. Continua exercendo as atividades de médico do trabalho, desta vez em empresas de transportes coletivos urbanos e plantonista nas emergências pediátricas e clínicas. Evidentemente diminuiu consideravelmente sua carga horária semanal, mas considera também a satisfação que o trabalho lhe proporciona, pois a medicina do trabalho, além do aprazimento, não exige tanto esforço por ser exercida no período diurno.
Não obstante, os plantões nas emergências lhes são particularmente cansativos, pois desde o início da sua carreira tinha dificuldade de repousar quando não estava atendendo, mesmo quando dividia o plantão com outro colega, realidade da grande maioria dos serviços de saúde emergencial, seja pública ou privada.
Acontece que, num desses hospitais, justamente o da região metropolitana, uma mente ¨iluminada¨ decidiu monocraticamente que a emergência pediátrica não necessitava de dois profissionais, alegando pouca demanda, o que não é e nunca será a realidade neste nosso país de miseráveis descamisados e carentes sociais. O que acontece, em verdade, é o desvio equivocado da natureza desses atendimentos que, na maioria esmagadora, não são considerados de urgência e emergência, portanto, deveriam ser resolvidos no atendimento primário dos postos de saúde. Essa constatação é válida para todas as áreas médicas, incluindo a traumatologia, cirurgia e clínica médica.
A emergência pediátrica é a que mais sofre com esta falha do sistema pois seus usuários são bebês, crianças e adolescentes, grupo singularmente sensível na nossa sociedade, pois envolve também os pais e outros atores familiares, que por insegurança, desconhecimento e medo, levam seus dependentes para emergência por quaisquer sintomas e sinais clínicos ou psicológicos, até os mais banais como um simples prurido, um pesadelo que os faz acordar no meio da noite, uma tosse que os leva a engasgar e até mesmo um choro desmotivado. Neste dia Mardônio atendeu infestação por piolhos.
É neste cenário que os profissionais da emergência pediátrica trabalham e, no caso desse hospital municipal em particular, há mais de cinco anos com apenas um pediatra no horário noturno, incluindo o período da pandemia do Coronavírus e suas tétricas consequências. É importante salientar essa maldade para com esses profissionais, pois mesmo que a demanda não fosse alta, o que não é verdade, obriga-os a ficarem em alerta, pois são atendimentos que ocorrem fracionados durante toda a noite, o famoso pinga pinga.
Também é perfeitamente compreensível que os pais e responsáveis desses pequenos pacientes fiquem ansiosos por atendimentos mais ágeis e efetivos, por mais simples que sejam, pois para eles, qualquer alteração em seus rebentos é de extrema gravidade. Mas isso acarreta uma sobrecarga no serviço, agravada pela infeliz redução do atendimento a somente um profissional.
Uma das mais preocupantes consequências dessa situação ocorre quando pacientes graves estão internados para tratamentos ou transferências para outros serviços de maior complexidade. Forçosamente o médico tem de parar o atendimento de rotina para dar atenção a esses casos. O resultado é uma autêntica confusão dos pacientes em espera.
Pois bem, foi exatamente isso que ocorreu num plantão recente. Ao assumir o serviço, Mardônio sabe que não tem tempo para mais nada, nem sequer jantar ou ir ao banheiro. Iniciou o atendimento em torno de 19:30 h após passar pela enfermaria da emergência para conhecer e avaliar os internados.
Nesta noite haviam duas pacientes que mereciam atenção. Uma criança de nove anos na sala de reanimação (uma mini UTI), com insuficiência respiratória grave e refratária a tratamentos convencionais. Estava regulada para transferência desde o horário da manhã. Outra era uma adolescente de dezesseis anos com suspeita diagnóstica de cisto ovariano pela ultrassonografia ou cisto mesentérico pela tomografia computadorizada. Um caso típico de indicação de laparotomia exploradora. Nesse hospital não são realizadas cirurgias pediátricas, portanto, também estava regulada para transferência. Queixava-se de dor intensa, o que obrigava Mardônio a periodicamente reavaliar e medicar.
Quando iniciou o atendimento, já estavam acumulados onze pacientes na espera, mais cinco retornos. Desde que começou a trabalhar na emergência, recém formado, Mardônio tem o cuidado de examinar os pacientes, nem que seja de forma objetiva, pois a demanda exige que seja assim. Isso faz com que demore, em média, dez minutos por paciente, o que considera muito pouco tempo, pois para anotar as queixas, fazer o exame físico, solicitar exames de laboratório ou imagem, prescrever medicamentos e fazer receita para casa, é um tempo exíguo, mas é o que precisa ser feito para evitar acumulação na sala de espera.
Dessa forma, atendendo cada paciente em dez minutos, vai atender em torno de seis pacientes por hora. Sem contar os de retorno, que são mais rápidos. Neste dia, após duas horas de atendimento, já tinham mais quinze pacientes em espera. Diferentemente de outras épocas, principalmente antes da pandemia, as pessoas esperavam pacientemente sua vez, considerando que os casos mais graves têm prioridade de atendimento.
Depois da pandemia, por um mistério sociológico para o médico, que tem familiaridade com as ciências sociais, principalmente a filosofia, as pessoas passaram a apresentar baixo limiar de paciência e começam a se agitar e reclamar de forma agressiva da demora, a ponto de alguma invadirem o consultório para dizer que seu filho está queimando com 37° C de febre.
Uma delas, muito agressiva, alegava que sua filha de dois anos estava vomitando, sem febre ou diarréia, o que foi confirmado pela triagem com a enfermeira. Foi examinada e providenciada a medicação antiemética (bromoprida) por via intramuscular para evitar reações de natureza extra piramidal (do sistema nervoso). Por esse motivo Mardônio sempre pede para que aguarde de quinze a trinta minutos antes de ir embora de alta. Foi nesse espaço de tempo que a criança entrou em convulsão febril, pois estava apresentando hipertermia não percebida pela enfermagem ou pelos pais.
A partir deste momento, o que se passou nesta emergência foi algo surreal, indescritível, nunca antes visto pelo profissional em toda sua experiência relatada anteriormente. A mãe, num comportamento exageradamente agitado, gritava e chorava num desespero descomunal, acompanhada da irmã, que também gritava correndo com a criança no colo. Assustado com aquilo, o pediatra saiu do consultório, pegou a criança no colo e levou para a sala de reanimação pedindo o apoio da equipe de enfermagem. Fechou a porta e não deixou ninguém entrar, apesar da insistência e desespero da mãe, pois só ia agitar mais a situação.
Para o profissional era uma situação mais que corriqueira nas emergências pediátricas, visto que é frequente as convulsões febris em crianças menores. Nos quarenta anos de sua experiência, nunca presenciou complicações mais sérias ou óbitos decorrentes dessa condição patológica.
Concomitantemente, uma mãe que tinha levado a filha com tosse e coriza nasal para uma UPA, que trabalha com dois profissionais na pediatria, não teve paciência de esperar e se encaminhou para o hospital. Queria prioridade de atendimento alegando que sua filha era autista. A enfermeira da triagem, correta e calmamente explicou que, na emergência, o autismo não é critério de prioridade e sim a gravidade da emergência a ser atendida. Foi o suficiente para essa mãe também entrar em chilique e começar a gritar que ia processar e prender a enfermeira, chamando a polícia.
Nesse interregno, toda a gritaria concentrada contaminou outros pais e crianças que estavam aguardando atendimento, numa espécie de histeria coletiva, Todos começaram a gritar e se agitar, algumas crianças desmaiando e mães passando mal. Mardônio, que já tinha controlado o quadro convulsivo, tentava em vão, acalmar todos dizendo que tudo já estava sob controle. Vendo que não conseguia, se limitou então a atender os que passavam mal emocionalmente (os conhecidos pitis).
Foi preciso três composições da polícia chegar para acalmar os nervos dessa gente, sem deixar de dar uma reprimenda por estarem atrapalhando e prejudicando todo o serviço de emergência do hospital.
Enfim, após toda essa balbúrdia, tudo terminou bem. A criança com convulsão foi controlada e recebeu alta ao amanhecer, a paciente autista foi muito bem atendida e a mãe aceitou as explicações do médico para isentar a enfermeira de alguma falha, a paciente cirúrgica, foi operada pelos cirurgiões da casa num gesto de profissionalismo e coleguismo, os quais agradeço em público (era um enorme cisto ovariano) e a paciente com insuficiência respiratória melhorou tanto que foi a única a dormir tranquilamente em meio a toda confusão.
Fica a reflexão: neste relato que tem o título inspirado na famosa e genial comédia de Shakespeare ¨Sonho de Uma Noite de Verão ̈, também contém, de certa forma, paixões desencontradas, fadas, duendes, elfos, heróis, autoridades negligentes (Oberon e Titânia), magias (Puck) e até a floresta encantada, representada simbolicamente pelo ambiente hospitalar. Também terminou como se tudo não passasse de um sonho, no caso, um pesadelo.
Infelizmente a realidade da saúde pública não é uma comédia teatral. Está mais para um drama trágico. Uma situação que, desde a criação do SUS, no final da década de setenta, a qual o Dr. Mardônio participou ativamente como estudante de medicina atuante na política estudantil pelo diretório acadêmico, tem visto, a cada dia que passa, aumento do descaso e negligência do poder público e das autoridades políticas a favor de interesses corporativistas, individuais e transgressores, em detrimento da saúde da população, particularmente dos mais desfavorecidos e desvalidos.
Marco Antônio Abreu Florentino
Médico do Trabalho (ANAMT/AMB)
Médico Pediatra (CFM/SBP)
Médico infectologista (UFPB)