Das Minhas Lembranças 54

Não me lembro se tive alguma ilusão de ganhar dinheiro com a venda de meus livros. Cobrindo os custos, já me dava por satisfeito, ou seja, do ponto de vista financeiro, trocar seis por meia dúzia. Se pudesse, as tiragens seriam maiores e as distribuiria gratuitamente. Como disse Lewis Hyde em seu livro A Dádiva, uma obra de arte não se enquadra como mercadoria, uma vez que é fruto do dom, que o artista recebe de graça.

Dito isto, lancei em 1991, teimosamente, O Comedor de Livros em mais uma edição do autor. Foram mil exemplares, sendo que o empresário Lúcio Costa, adquiriu algumas dezenas. De novo contei com a solidariedade caseira de meus filhos Roberto e Fernando. O primeiro desenhou a capa e o segundo fez a editoração eletrônica. O lançamento aconteceu no Palácio das Artes. Teve também um lançamento no Circo Voador, instalado na praça da estação, em Belo Horizonte. Entre os lançamentos, creio ter sido o mais elaborado até então.

O Comedor de Livros

Lia livros e mais livros

Com olhos e boca

A cada livro que lia

Em seguida o comia

Comia com olhos – que a terra há de comer

Com boca e dentes para melhor entender

Comia-os como sanduíches

Com mostarda e catchup

Tragédias dramas

Qualquer trama

Para compreendê-los

Bom mesmo era comê-los

Sentiu forte emoção

Em Cem Anos de Solidão

Com Ulisses ficou aturdido

Em Busca do Tempo Perdido

Sentiu um misto de tristeza e alegria

O que não aconteceu em A Escolha de Sofia

Comendo Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos

Sentiu-se farto satisfeito

Com Orlando – metade homem metade mulher

Despediu-se com um aceno

Para comer A consciência de Zeno

E comeu com regozijo Enquanto Agonizo

Ao comer o Deserto dos Tártaros chorou

Comeu Poema Sujo

De Pessoa comeu os heterônimos

Comeu autores anônimos

Com As Flores do Mal

Sentiu um apelo um sinal

E comeu Lima Barreto Bandeira Sartre e Machado

Castro Alves Maiacoviski e Callado

E comeu Rimbaud Sthendal Camus e Afonso Romano

Comeu por engano discos do Chico e do Caetano

E comeu Saramago Cecília Amado Dikhinson e Adélia Prado

Becket Dos Passos Chaucer Kafka Verlaine e Arrabal

E comeu toda biblioteca municipal

Devorou as livrarias da cidade

E após uma certa idade

Sentindo-se mal

Foi levado às pressas ao hospital

Morreu na fila por falta de atendimento.

Uma das dificuldades do autor marginal é fazer o livro chegar aos leitores. É preciso fazer poeira, como me diria anos depois a amiga e parceira de letras Edna Lopes. Distribuir em livrarias, sem chances. Mas eu até tentei a mídia algumas vezes. A TV Minas, que é pública, divulgou o lançamento. Por ter sido lançado no Palácio das Artes, houve divulgação, tanto deste, quanto de Três Estações, no Jornal Estado de Minas, no qual o poeta Márcio Almeida tinha uma coluna de crítica literária. Enviei ao colunista um exemplar de O Comedor de Livros e de Três Estações. A crítica dele foi dura, me sugerindo, inclusive a tentar a prosa. Acatei, em parte, a sugestão, lançando em 2006, Crônicas do Cotidiano Popular, tema do próximo capítulo.

Raio em Céu Azul*

na cabeça do homem na cabeça da vaca

na cabeça de quem quer que seja

seja Deus seja santo

seja eu sejam tantos...

quantas flores

quantas dores

quanta guerra

quanta era de aquário...

quanto luto quanta luta

“quantas barricadas por seis sardinhas infelizes” (Jacques Prévert).

tanto alto quanto salto quanto assalto no escuro

eu tanto procuro

este “obscuro objeto do desejo” (L. Bunel).

quanta cópula quanta cúpula

quanta coisa esdrúxula:

mariposa cheia de tetas

ideias repletas de tretas

“tiranos fazendo planos para dez mil anos” (Bertolt Brecht).

e que me vale

e que me serve este sexo

este plexo complexo de édipo

eu perplexo enquanto

“elétrons deificam uma gilete em macroescala” (T. S. Eliot).

minha mãe

santa criatura

hermética partitura

nesse meu inconsciente do inconsciente coletivo

vendo “minha cabeça servida numa travessa” (T.S. Eliot).

que me vale que me valha

“duas mãos e o sentimento do mundo” (Carlos Drummond de Andrade).

“o dono da tabacaria” (Fernando Pessoa).

procissão romaria:

“É de sonho e de pó o destino de um só” (Renato Teixeira).

com uma faca na garganta

uma molécula uma tarântula:

“quem, se eu gritasse, entre as legiões de Anjos me ouviria?” (Rilke).

mesmo que ouvisse de que adiantaria?

“tem piedade, Satã, desta longa miséria!” (Charles Baudelaire).

nem anjos nem demônios

arcanjos querubins

protegerão meus neurônios

“allons! Seja você quem for, venha comigo viajar” (Walt Whitiman)

“sem medo de ser feliz” (Hilton Accioly)

neste tom neste som

que fornalha em meus ouvidos

este caco este saco este asco fiasco sustenido

este corte esta morte

este amor inconcebível

“troço de louco, corações trocando rosas e socos” (Paulo Leminsk)

ainda assim a gente grita a gente corre

“atrás da mesma alegria fatal” (Konstantino Kaváfis).

* Poema premiado e publicado em uma antologia poética do Miramar Shopping