Cultura e Mestiçagem
No museu da Sé da cidade de Braga – na província do Minho, no Norte de Portugal – sobrevive, no alto de uma parede, um afresco MOÇÁRABE, com as cores já bastante diluídas... Uma amostra artística, um testemunho artístico, do que foi um intercâmbio cultural que tanto marcou o desenvolvimento da cultura da Península Ibérica.
Ainda não há muito tempo, os historiadores da Arte Europeia afirmavam a sua “pureza” fosse em manifestações do estilo Românico ou do estilo Gótico. Outros traços nela presentes não eram valorizados.
Felizmente, os ventos culturais mudaram. Actualmente, valoriza-se a presença das características que demonstram o estreito intercâmbio e consequente influência recíproca entre as duas culturas que co-habitaram na Península – a cultura cristã e a cultura arábico-berbere-muçulmana. Não esquecendo que a arte dita Gótica, das catedrais cristãs medievais – de que a Europa tanto se tem ufanado – encerra a sobrevivência de formas e traçados célticos, ou seja, releva da sua origem “pagã”.
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Esta viragem nos considerandos da História da Arte foi há pouco documentada pela historiadora Joana Ramoa Melo, que diz, e cito de memória, que “a visão estética tradicional sobre a nossa História da Arte está ultrapassada”.
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Eu parto de um conceito que considero basilar:
“A Cultura é um monumento à Mestiçagem”.
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Teoricamente, o “mestiço” deveria movimentar-se com o mesmo à vontade no seio das duas culturas que lhe deram vida, a paterna e a materna… Portanto, o “mestiço” deveria ser a ponte entre dois mundos…
Sabemos que do ponto de vista biológico, são os “cruzamentos” que viabilizam o desenvolvimento das plantas. Uma constatação que sabemos ser milenar!
Deveria passar-se o mesmo na cultura humana. São os “cruzamentos” das diferenças culturais que têm, em múltiplos aspectos, enriquecido a Humanidade…
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Na prática, porém, não é isso que se passa… Porque o contacto entre culturas tem predominantemente acontecido em circunstâncias de ataque e assalto, com intenções de domínio e exploração dos grupos (países) “fortes” em relação a grupos (países) “fracos”… E se acontecia no Passado, quando essa maior “força” residia na posse de armas mais eficazes, no Presente essa maior força reside na posse de economias muito mais poderosas – incluindo igualmente a posse de armas, agora tragicamente muito mais eficazes.
Nesse contexto, ou porque é educada pelo progenitor mais poderoso, ou porque por instinto de sobrevivência se identifica com esse progenitor para se sentir protegida, verifica-se frequentemente que a criança mestiça se integra apenas, ou predominantemente, numa das duas culturas…
Daí que ainda se considere o “mestiço” como um ser “sem bandeira”, uma pessoa que regra geral tenderá a identificar-se com a cultura do progenitor que representa a cultura dominante… – Em última análise, neste sentido, o “mestiço” será alguém pronto a trair o grupo desfavorecido em favor do grupo dominante…
No entanto, nem sempre isso se verifica.
Um exemplo digno de registo::
O jogador Mário Coluna, falecido há poucos anos:
Mário Coluna – 1935-2014 – moçambicano, filho de pai português europeu e de mãe africana nativa.
Foi referido, aquando do seu falecimento, que ele tinha nascido no norte de Moçambique e que o pai o tinha abandonado bem como à mãe para se fixar, salvo erro, na então cidade de Lourenço Marques. Mas quando um amigo o censurou por ter um filho que não educava convenientemente, o pai pura e simplesmente, numa total falta de respeito muito própria da época, arrebatou-o à mãe. Não terá ligado muita importância ao menino, mas enfim, ter-lhe-á providenciado alguma educação… No entanto, Mário Coluna não se juntou à cultura que seu pai representava, a cultura do colonizador; muito pelo contrário, optou pela cultura representada pela figura materna – optou pela luta pela independência do seu País.
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Eu estou convicta que, se dermos os nomes certos aos fenómenos sociais, contribuiremos para uma educação para a Paz, porque estaremos a encarar os preconceitos de forma a transformá-los em conhecimento reparador dos erros do Passado.
Habitualmente, fala-se em intercâmbios culturais, influências recíprocas, interculturalidades, intertextualidades… Mas a verdadeira designação para este fenómeno, terá que ser “mestiçagem”. E não é bem mestiça a cultura actual, a cultura internacional, a cultura da era da Globalização?
Na sua participação no programa "La Librairie Francophone", da TV5 Monde, no dia 7 de Julho de 2019, Jean-Marie Gustave Le Clézio - prémio Nobel da Literatura em 2008, afirmava:
«Il faut métisser la Culture; c’est la seule manière de la rendre universelle. Dans ce monde égoïste et cupide, tout s’exporte. Sauf l’humanisme.»
Myriam
01 de Março de 2023
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Encontrei nos meus arquivos, essa citação de Le Clézio,
e achei que ficava muito bem aqui, a concluir o meu texto.
16 de Julho de 2023