A sister e o livro

Teve repercussão, no BBB23, a fala de uma jovem sister de que nunca tinha lido um livro na vida, o que a deixou em dificuldades na internet, na sua comunicação como influenciadora digital. A menina, vejo aqui no Google, se chama Key Alves, é jogadora de vôlei e é muito conhecida nas redes. Não sei se vai bem no programa, mas espero esteja se portando com muita ética.

É muito estranho que a moça – acredito que tenha no mínimo o ensino médio – nunca tivesse lido um livro, até porque os professores, principalmente os de português, colocam a indicação de livros no seu repertório didático e ajudam (e muito!) a formar leitores. Nesse sentido, a moça seria um caso raro.

Antigamente, os vestibulares traziam, a cada ano, uma lista de livros a serem lidos. Hoje, o Enem, pelo que sei, traz uma prova que requer muita leitura, mas não indica um livro sequer. Acredito que devam repensar esse aspecto e passar a indicar leituras anuais para o exame. Não uma série gigantesca de livros, mas um ou dois títulos a cada ano, de preferência clássicos, disponíveis no domínio público na internet ou em impressões baratas.

A repercussão da fala da jovem Key coincidiu com a leitura que eu fazia da obra ‘Torto Arado’, de Itamar Vieira Júnior, um festejado romance, ganhador de vários prêmios e de milhares (talvez milhões) de leitores, levando seu autor à condição de celebridade da moderna literatura nacional.

Bebiana, Belonísia e Santa Rita Pescadeira são as narradoras da obra – mulheres fortes a quem o autor, numa linguagem muito dele – entrega o protagonismo narrativo nas três partes em que se divide o romance. E o autor vai nos conduzindo por um Brasil que não se cansa (olhemos a nossa realidade hoje!) de nos assustar com o tratamento desumano para com os pobres e negros, com a submissão dos humildes ao trabalho em condições miseráveis, escravas, com os maus tratos às mulheres, com a justiça injusta...Esse mesmo Brasil que se conscientiza e faz nascer um Severo – homem do campo, trabalhador, consciente de injustiças e brutalmente assassinado pelos poderosos, pelos “donos da terra”, cenas que parecem reproduzir nossa realidade presente e que, na descrição do autor, têm suas origens lá longe, muito longe na (des)caminhada desde a África até nossas terras.

Fui à tevê e assisti à entrevista de Itamar Vieira ao Roda Viva. Um entrevista esclarecedora, muito útil, acredito, a quem esteja estudando a obra, pois o programa esclarece alguns pontos da biografia do autor (geógrafo e servidor público do Incra, conhecedor, portanto, de questões relativas à terra), registra suas vivências com situações que certamente inspiraram a ficção e, até mesmo, fornece algumas pistas para os leitores.

Chamou a atenção na entrevista o trato entre os jornalistas para não darem ‘spoiler’, o que, a meu juízo, nem seria tão necessário, porque – ainda que houvesse uma ou outra inconfidência – a obra – com suas figuras, suas descrições – tem no lirismo, na sutileza, na leveza poética uma força capaz de fisgar o leitor, mesmo que ele tenha tomado conhecimento de uma ou outra parte do enredo.

E já vou eu fazendo um ‘spoiler’! Bebiana e Belonísia, ainda crianças, ao brincarem com uma faca da avó e a colocarem na boca, se feriram... Belonísia perdeu parte da língua e nada foi possível fazer. A menina ficou muda. Quando mais tarde Bebiana vai embora com Severo, ela deixa a irmã, a quem tinha servido, interpretando seus gestos e sentimentos. Vejam Bebiana narrando sua partida: “Dentre as coisas que levava, e talvez a que mais me machucava, era a minha língua. Era a língua ferida que havia expressado em sons durante os últimos anos as palavras que Belonísia evitava dizer por vergonha dos ruídos estranhos que haviam substituído sua voz. Era a língua que a havia retirado de certa forma do mutismo que se impôs com o medo da rejeição e da zombaria das outras crianças. E que por inúmeras vezes a havia libertado da prisão que pode ser o silêncio”.

A jovem Key não leu ‘Torto Arado’. Perdeu... Assim como perdemos todos nós esse e tantos outros livros importantes que nos trazem reflexões, ensinamentos, conhecimento de vida, conhecimento de gentes – com seus padecimentos, suas alegrias, suas derrotas... Conhecimentos de língua, Key, que tanto são úteis a comunicadoras como você, sister. Conhecimentos que certamente trariam mais humanismo às nossas discussões, mesmo (e, talvez, principalmente) aquelas expostas em programas de entretenimento, que – digo antes de terminar – poderiam bolar umas formas de nos fazer um país repleto de leitores. Sabedoria eles têm pra isso!