Hoje me olhei no espelho e fui pega por um assombro. Quem é aquela do outro lado que não tem medo de me penetrar no fundo dos olhos e descobrir o que eu escondo? Tive medo, medo mesmo, de não ser eu quem me olhava. Parecia que me via pela primeira vez, com o espanto de se saber humana, frágil, talvez eu. Não reconheci a tentativa de sorriso escassa e amarela que me ofereci. O cabelo não encaixava, tinha qualquer coisa de errado nas bochechas. 

   Prendi o cabelo, soltei. Pus a mão no rosto e tirei. Desviei. Me incomodou imenso. A mulher no espelho quer trocar palavras, mas somente eu as tenho. A mulher no espelho não sabe se ri ou se chora. A mulher no espelho traz no rosto uma denúncia: é só uma menina. Sabe que deveria já ser mulher, pela idade ou pela vida vivida, pela intensidade com que as situações lhe alcançaram no alto do abismo e lhe bateram tanto até que fosse preferível cair.

    Sabe que deveria ter caído mulher. Como uma maçã madura. Mas não, caiu menina e já não pode voltar à raiz, não é bem-vinda. Não tem mais alças, fita, cola, durex, nada que a prenda à macieira novamente. Para onde foi a mulher que ela deveria ter sido? Talvez esteja ainda a vagar pelas margens do abismo, não sabe se pula, se busca e pega a menina no colo, se a veste com o corpo e a sabedoria de mulher. Fica talvez lá parada, só olhando, esperando que a menina faça o caminho de volta.

      Não tem volta. 

    A menina espera a mulher como quem espera uma mãe, mas essa mãe que espera não vem. A mulher respira aliviada de não ter que cuidá-la, de não ter que sê-la, de não precisar abraçá-la, porque é mais fácil machucá-la, ela viu. Para a mulher um alívio não ser. A menina quase foi. E nenhuma das duas é. E se elas ficarem bem quietas, se esperarem, isso também passa. 

     Passa. 

     Passa o vento insaciável e limpa por dentro: amores, órgãos, pensamentos. 

     Passa o momento rude, o tempo urge e fica tarde.

     Passam pessoas pequenas com tanta pena que os olhos ardem.

     Passa o prazo de ser e sobra vida para outra vida não nascer.

    A menina no espelho pede socorro. A mulher mãe agora sou eu. Era mesmo a primeira vez que a via e preferia que a menina não fosse minha, porque seria mais fácil. Quando me negaram, eu me neguei. Quando me bateram, eu me bati. Quando me mataram, morri. E agora eu cresci. Eu senti a altura do abismo e desci. Encontrei a menina e pedi desculpas por rezar aos pés da macieira para ser ouvida, aceita e amada quando era a minha vez de ouvir, aceitar a amar. 

        A menina no espelho está no meu colo. Eu amamento a menina, vejo-a brincar, seguro suas mãos, lhe abraço quando chora, lhe afago pela demora. Acompanho-a crescer até caber em mim. E me serve. E enfim, somos.

 

 

Letícia de Queiroz