O camelo, o martelo e a foice

Das histórias que me contavam na infância sobre a época do repúdio aos padres e pastores desleixados com o ofício e ávidos por dinheiro, pouco pode ser encontrado nos livros. O que se sabe é que no silêncio da noite mais densa, de repente o golpe da usurpação acertou sem piedade os fazedores de milagres, deslocando cada um para seu caminho particular. Na transição entre uma e outra cena, não houve aplausos, nem cortina se fechando no final. Aqueles que, fugindo da difamação, foram induzidos a abandonar o ofício e trabalhar em proveito da glória secular, caíram em descrédito, amontoando opróbio à ruína daquela instituição cujo doloroso fim a precipitou nas cinzas do esquecimento.

Entre os laicos, porém, os desagregados preferiram pensar de outra maneira, pois viam o culto da personalidade como o verdadeiro estopim de atração às circunstâncias favoráveis à instalação do caos. Havia também um grupo que, considerando os acontecimentos com um sentido mais realista, entendia cada caso como possível efeito de muitas causas e todas elas como que cooperando para o desfecho de um plano que envolvia toda a história. Nesse caso, a ilusão de compreender era o superior deleite. Quanto aos outros, preferiam atribuir cada efeito a uma causa única e, se possível, encontrariam algum oponente humano pelo prazer de perseguir uma vítima.

E apesar do rigoroso doutrinamento do passado protestante, alguns dos mais nobres adeptos abandonavam o objetivo principal dos seminários para converter-se em meros pensadores desviados. Desse arranjo, aparentemente malfazejo, vez por outra surgiam políticos razoáveis. Obviamente, nada jamais resultou em eficiência. Nem os padres, nem os pastores foram capazes de romper o encrostamento do sistema. Além do mais, o que interessava mesmo à classe de cidadãos comuns daquele tempo, era prover o alimento cotidiano para os filhos, e, de resto, enviá-los à escola para terem um bom emprego no futuro.

Agora que a má erva se alastra e cresce sem nenhum som de trombeta, penso comigo mesma, que o extravio ao indigno foi o método de propaganda necessário para torcer nossa vontade. De fato, recebemos de bom grado os novos viajantes que com espírito de autoridade e decisão energizada não sei por quem, perambularam pelo mundo com seus camelos. E sem nos avisar de sua força, acabaram por fazer de nós, meros animais subjugados pela própria carga deles, até o dia de hoje.

Tem sido assim por muito tempo e já agora, catedrais destruídas e tendas palacianas surgindo por toda parte, lançam em nosso rosto a dor pontiaguda que comove e impressiona e ao mesmo tempo dissolve paixões, sentimentos e afetos. Não há cidade onde o novo cenário não esteja em construção e nas capitais vê-se tudo prontamente construído. A que se deve essa sublevação? Será se a devoção cristã era tão desnecessária quanto os templos que a abrigava? Lembro-me do quanto os sacerdotes da ala das luzes arrepiavam a multidão ao som de sua eloquência de ondas trovejantes. E se isso deve ser levado em conta, poderia quem sabe ajudar a explicar a frieza cética em seus olhares quando a lealdade à instituição não lhes rendia mais proveito algum.

Jorge, no entanto, um velho peregrino desolado, ex-pastor local e ex-futuro bispo, fez sua primeira visita à Birsúnia, já completamente livre do encanto da serpente. Para ele não houve tempo de ser aclamado por ninguém. Jamais seria enterrado com pompa pelos fiéis nicolaítas que noutros tempos endeusavam o clero protestante. Estava feliz por não ter se tornado personagem conhecido naqueles anos de honras. À custa de muito tempo empreendido no projeto de escape, Jorge finalmente chegou à capital; o grande abismo entre o plano e a fuga foi transposto. Sentia-se livre. Talvez por isso, o longo tempo de viagem não lhe abateu o semblante. Mas assim que desembarcou na cidade, a guerra de sentimentos se acendeu nele enquanto arrastava o corpo amarfanhado, deslizando no espelho do piso, a pequena bagagem.

Olhou estarrecido à sua volta, um nó preso na garganta. Quantas igrejas destruídas ao longo do caminho! Delas só restavam lembranças desbotadas e estórias nem sempre precisas. Escombros e mais escombros relembrando velhas ladainhas de devoção cega e ameaça hostil. Ao toque das lembranças as imagens de cúpulas e palácios atuais lhe causavam enjoo. Oh, o desolador!

De longe Patrícia encenou uma cena de boas-vindas com olhar brilhante pela expectativa a respeito do recém-chegado visitante. Por fim, receosa de demonstrar excesso de alegria ou qualquer coisa que se assemelhasse à macaquices, acenou um olá e com ar de pouca cordialidade e lhe entregou as chaves do quarto.

Jorge pensou na família da qual havia se apartado e respirou fundo, contendo o aperto que lhe pressionava o peito. Sabia que dali por diante um nó na garganta estaria presente no constante ato de particular devoção. Ter vindo da costa leste, era um projeto que implicava num combate solitário contra duas guerras antigas entre a vida que guardava em segredo e o risco de perecer miseravelmente a caminho, vítima das atrocidades da vingança por seu crime contra o estado.

Uma doce sensação de paz perpassou o coração de Jorge enquanto os olhos percorriam a brancura do quarto, apreciando o contraste do edifício com a beleza da mobília simples, quase singela. Lembrou-se imediatamente de seu amor e o passado que limitava suas posses ao estritamente essencial. Aprendeu assim, a aquietar-se sob a mão do opressor. O momento chegara. Era como se aquele recinto silencioso falasse de alguma herança longa e amorosamente acalentada no peito por quarenta anos. Por alguns segundos ficou parado ali em pé como quem usufrui de uma brisa rápida e fresca em dia quente de verão. Mas o barulho de xícaras de chá vindo da sala o trouxe de volta à realidade lembrando-lhe que seu corpo cansado suplicava por um banho quente.

Iva Mark
Enviado por Iva Mark em 23/02/2023
Código do texto: T7725730
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.