Acorrentados dóceis

Eu, Wiky, da sacada do meu apartamento, observava o brilho da azulada água parada e me dava vontade de me jogar suavemente como um atleta de saltos ornamentais, mas fui impedido pela barreira de vidro que ornamentava minha jaula. Todavia, eu não tinha mais a idade para tentar me aventurar. O tempo se tornara injusto para o meu tipo, pois passa tão rápido. Eu tinha sido vítima de um acidente vasculhar cerebral, porém o meu tutor era especialista em saúde pública e me tratara com tanto afeto que às vezes eu achava que fazia parte do seu mundo racional. A minha linhagem estava espalhada pelo mundo afora, porém em boas mãos como eu que instintivamente não abria mão da vida boa que me foi concedida desde o dia em que nasci e fui resgatado e amamentado com a mesma mamadeira de Clarinha. Eu não tinha o direito de me aproximar do bar da piscina,entretanto, quando descia os sete andares do elevador de carga, percebia que os poucos instantes no solo terrestre entre os pneus e os postes proibidos eram significantes e prazerosos, pois seria o momento de respirar o ar do meu verdadeiro habitat. Era ali que o instinto protetor se manifestava e vinha o que mais me alegrava. Havia uma festa quando surgia em minha volta a tão delicada Maria Eduarda, José, o brutamontes que exibia seu tórax e sua cabeleira pra tentar nos impressionar e os capetinhas do bloco I, Bidu e Sol, que se entrelaçavam quando saiam do colo de seu consorte fiel a correr em disparada sem direção ao perceberem que o chão não era mais aquela pedra de porcelanato. De repente, Stanley imitava o policial e se postava diante de todos pra enviar sua mensagem territorial que fora abortada pelo desfile de Bela que chamava a atenção para si, pois era inevitável admirar a sua simpatia e beleza. Lua despontava de repente a se sentir liberta da opressão de seu aconchego a se juntar na roda. A jovem Ravena se intimidava com a cena a ficar de fora a nos mirar, enquanto outros eufóricos seres corriam ao redor do estacionamento assistidos pelos seus personal trainers.

Tantos personagens compunham aquele momento de liberdade e apesar de estarem presos às mãos de seus tutores, eles enviavam sinais de emoção a cada gesto de seus instintos como no dia em que a doce Lola se aproximou de mim e soltou lágrimas de choro a perceber que minha jornada estava chegando ao fim devido a ordem natural das coisas e logo após se jogou sobre mim. Quiçá ela queria me dizer que quando eu partir, logo voltarei um cãozinho novamente a repetir as mesmas peraltices de destruir as sandálias e morder os calcanhares do meu novo dono ou quem sabe devido a não erraticidade dos animais, eu possa retornar tão rápido aos braços do meu amado primeiro tutor.

Ed Ramos
Enviado por Ed Ramos em 22/02/2023
Reeditado em 26/02/2023
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