Paifessor

- Ô, Professor! Tem uma parada meio nervosa pra desenrolar com o senhor!

- Fala, Djow! O que que tá pegando?

- Ah, mano! Tô sentindo uma dor estranha na virilha. Já faz uma cara...

- Contou pra sua mãe?

- Tenho vergonha, Professor!

- Fala sério, Djow! Vergonha da mãe! Não tem nada aí que ela não conheça muito bem, rapaz...

- Ah, quando era criança, né Professor! Agora tá tudo bem diferente...

- Mesmo assim tem que falar pra ela. Você ainda é menor, ela é sua responsável legal e tem que ir com você pro Postinho, pra agendar consulta.

- Eu sei, Professor! Mas aí pensei assim: ela marca a consulta lá e no dia o senhor vai comigo. Pode ser?

- É pra acabar, hein Djow! Então fica encabulado da mamãe ver as "partes", mas do professor não...

- Ah, é outra fita, Professor! É que ela começou a trampar faz menos de um mês. Foi uma vida pra conseguir essa vaga. Aí eu fico na neura de ter que fazer ela dar um perdido no serviço pra me levar pra agendar, depois outro pra consulta. Quebra essa, Professor! Bora lá comigo!

E tem jeito de falar não?

E lá foi o Educador acompanhar o Djow.

- É, rapaz! Tem uma hérnia bem aqui!

- Aê, Doutor! Pega leve, mano!

- É, precisa operar e, pelo que tô sentindo aqui, não da pra esperar muito não! Vou pedir os exames, você retorna e faço o encaminhamento pra cirurgia.

- Alguma restrição, Doutor?

- Ah, tem que evitar esforço. Atividade física vetada.

- Então não vou poder ir pra Itapetininga?

- O que é que vai ter lá?

- Olimpíada do Programa Atleta do Futuro. Mês que vem. Ele joga futsal, participa do Projeto Criança Cidadã. A Prefeitura tem um convênio com o SESI. Duas vezes por semana a gente leva as crianças e adolescentes pra lá. Conhecimento, cultura e esporte, trabalho conjunto dos educadores sociais e professores.

- E a piscina é da hora!

- Interessante, não sabia que existia essa integração! Mas, infelizmente, o senhor está desconvocado, José Pedro! JP, né?

- JP, mas todo mundo me chama de Djow! Ah, não boto uma fé que não vou viajar!

- Sinto muito, mas imagina você em competição, utilizando cem por cento da máquina, jogos diários. Se essa hérnia arrebenta, tem que sair correndo, direto pra mesa...

- Pois é, Djow, nem posso pensar em levar você! Sem chance!

- Fica triste não, rapaz! Vamo deixar você zero quilômetro pra próxima!

- É que não vai ter próxima, Doutor! É meu último ano no Projeto! Ano que vem tô na rua!

Aí o Educador olhou pro médico, coçou a cabeça e confirmou.

- É bem complicado, Doutor! A gente trabalha com o pessoal dos sete aos quinze anos, num tripé com a família e a escola. E não tem continuidade. Tem o Programa Jovem Cidadão, que atende os adolescentes até os dezoito, mas o contato não é diário, o vínculo acaba enfraquecido e a gente corre o risco de ver ir pro chão uma construção de tijolinho por tijolinho, depois de tantos anos de dedicação...

- Isso é muito grave! Não tem pra onde encaminhar esses meninos quando saem do Projeto?

E foi aí que uma luz acendeu.

- Fundação Mirim!

- Isso mesmo! A antiga Guarda Mirim! Eu participei! Foi criada lá na década de setenta com a finalidade de ensinar e desenvolver os valores morais e cívicos das crianças e adolescentes.

- Hoje a prioridade é preparar e inserir o jovem no mercado de trabalho.

- Mas pra entrar tem que passar na prova, né Professor?

- Nas provas! O processo seletivo tem prova escrita e entrevista. E tem que levar cópia do boletim escolar pra fazer a inscrição.

E a luz começou a brilhar forte.

- Falando nisso, como estão suas notas, Djow?

- Tudo azul, Professsor! O senhor sabe que eu mando bem na escola.

- Djow, você vai fazer a prova da Fundação! Tâmo em setembro, acho que as inscrições já devem até estar abertas...

E tavam mesmo. E mais. Adivinha quando seria aplicada a prova escrita! No mesmo fim de semana da competição que o Djow não poderia mais participar por causa da hérnia.

- Não, Professor! Não tenho bala pra passar nessa prova não, mano! Vou passar vergonha, tio! Vou fazer esse bagulho aí não!

- Djow, tem um baita sinal do céu sendo esfregado na sua cara e você não quer ver, irmão! O caminho tá dado! E você tem condição de passar, sim! E se não rolar, também não vai ser o fim do mundo. Só a primeira de muitas portadas que você vai levar na vida. Até chegar naquela que vai se abrir pra você. Porque a vida é assim! E só tem um jeito de saber, meu querido.

- Fazendo, né Professor!

- É isso, Djow!

- Pior que não tenho grana nem pro busão pra ir lá fazer a inscrição...

- Faz o corre pra providenciar os documentos e traz na sexta. Te levo lá...

Viajamos pra competição. O Djow fez a prova. Os meninos fizeram bonito na Olimpaf. Ganharam medalha de ouro na categoria. O Djow também.

Chegou com a cartinha da Fundação Mirim. Estendeu a mão, tremendo.

- Abre aí, Professor!

- Djow, você não teve coragem de ver?

- Tive sim, Professor! Eu passei, mano! Colei de novo pra trolar o senhor!

- Ah, moleque! E até fingiu que tava tremendo!

- O apavoro é real, Professor! A entrevista...

- Vai ter que encarar, ué!

- Mas o que é que vão perguntar? E o que é que eu vou responder? E se eu falar groselha? E se a pessoa não for com a minha cara? Sou da quebrada, Professor...

- Calma, rapaz! Paz no coração! Vâmo simular uma entrevista. Vâmo treinar. A resenha é praticamente a mesma em todo processo seletivo.

- Ah, já até tô castelando que vão perguntar porque eu quero entrar lá.

- E você não vai dizer que é pra trabalhar e ganhar dinheiro pra não depender mais do pai e da mãe.

- Miou! Era essa a letra que eu ia mandar, pô!

- Vai dizer que você quer aprender, adquirir conhecimento e cultura, desenvolver suas habilidades e potenciais, aprimorar sua capacidade de se relacionar com as pessoas, se preparar da melhor forma pra poder ingressar no mercado de trabalho...

- Minha mãe perguntou se precisa comprar roupa pra ir fazer a entrevista...

- Vai com o uniforme da escola! Tênis limpo, não precisa ser novo. Banho tomado. De chuveiro, não de colônia. Unhas cortadas e limpas. Sem colar de coco, nem brinco.

- Tá me tirando, Professor! Até o colar e o brinco? Mas é meu estilo! E qual a diferença? O que eu uso não tem nada a ver com o que eu sei!

- Concordo com você, Djow! Mas a real é assim mesmo. Também acho que as pessoas devem ser avaliadas pelo que são, pelo interior. Mas infelizmente não funciona desse jeito. No fim das contas, vai acabar passando quem tirou o colar, o brinco, o piercing, o alargador, escondeu a tattoo, se segurou pra descolorir o cabelo, pra pintar de roxo ou pra deixar o rastafari.

- Ah, ninguém merece! Tâmo em 2006, Professor! Pleno século 21! E essas ideia ainda comanda essa bagaça?

- Pois é, tudo o que estiver fora dos padrões estabelecidos desclassifica o candidato. Inclusive gíria! Então trate de se policiar e caprichar na conversa...

- Então vou ter que deixar de ser eu?

- De jeito nenhum! Seja você sempre! Mas nada impede e, na verdade, a vida até exige que a gente seja vários. Sem nunca perder a essência, claro. Mas sempre buscando evoluir, remando respeitando a maré, se adaptando, dançando no ritmo da música...

- Vai dar ruim! E se der branco? E se der suadeira? E se eu começar a tremer?

- Autocontrole também se treina! Postura correta, sentar ocupando devidamente o encosto e o assento da cadeira, pés fixos no chão, pra evitar de se pegar "chutando" o ar involuntariamente. E o mesmo cuidado com as mãos. Também não pode ficar estático como um robô. Tudo é equilíbrio. E o indispensável: sorriso no rosto!

Foi pra entrevista.

O primeiro adolescente do Núcleo de Ação Comunitária Ormando Nochette aprovado no processo seletivo da Fundação Mirim de Presidente Prudente. Causou!

E aí achou-se o veio. Se passou um boi pela porteira, passa a boiada inteira. Virou o ano e o Educador começou a preparação, de todos que completariam 15 anos - e topassem encarar a empreita - pras provas que aconteceriam só lá em outubro.

Mais estudo, focado, intensivo, com base nas avaliações da Fundação nos anos anteriores (eles seguiam um padrão de matérias exigidas e de formulação das questões), conjugado com os conteúdos trabalhados na escola (pra aproveitar a viagem e dar um talento no desempenho pra apresentar boletins vistosos).

Concomitantemente, milhares e milhares de ensaios de entrevistas, com todas as orientações sobre o que falar, postura, expressão corporal, gestual, como vestir, maquiar, o que pode, o que não pode. E dá-lhe treta e reflexão sobre ser e ter, essência e aparência, idealismo e pragmatismo...

E ainda tinha todo o rolê do psicológico. Deixar ok a cabecinha do pessoal pra segurar a pressão, não vacilar na autoestima, superar as limitações, enfrentar o medo, se manter firme contra o preconceito (e tinha, bastante, por conta da condição econômica e social).

E deu bom demais! Só 100% de aprovação! E a pegada continuou a mesma nos anos seguintes.

E o que a galera descobriu é que muito, mas muito mais difícil que entrar na Fundação Mirim, era permanecer, concluir os cursos e ser encaminhado pro mercado.

Exigiam notas impecáveis na escola, frequência absoluta nas atividades desenvolvidas, capacidade de empreender, criar, comunicar, se relacionar.

Vira e mexe apareciam lá no Projeto, pra trocar ideia com o Educador, compartilhar as conquistas e os perrengues, desabafar, comemorar, chorar, falar sobre a vida, atualizar as configurações de família, namoro, planos pro futuro.

E o tempo foi passando. E, naturalmente, a distância foi aumentando. E a vida segue pra todo mundo. Ciclos que terminam pra que outros comecem. O ciclo do Educador no Projeto também chegou ao fim.

E não é que um belo dia os caminhos se cruzam de novo?

Tá lá o Educador fazendo sua caminhada e tromba o Djow, saindo do consultório do dentista. Casado, esposa de sete meses, aguardando a chegada da Vitória. Atuando no ramo financeiro.

Ficaram mais de uma hora na resenha, ali na rua mesmo, lembrando das passagens, inclusive a da cirurgia da hérnia, que só rolou depois de mais de um ano do diagnóstico (e só por conta de intervenção do Ministério Publico pra obrigar o Estado a realizar o procedimento).

- Ô, posso te dar um abraço, mano? Sabe que o senhor foi muito mais que um professor pra mim, né? Foi um Paifessor!

Tá lá o Educador andando no Centro e topa com a Witney. Parceira de vôlei de areia no campinho do Projeto. Não perdiam pra ninguém. Enfermeira. Cuidando de gente. Feliz da vida!

Apresentou o Educador pro sobrinho.

- Esse é o professor de quem seu pai, seu tio e eu contamos as histórias do Projeto!

Tá lá o Educador descendo do carro, pra entrar em casa e passa o Breno. Mais de uma hora de prosa. Construtor. Faz-Tudo. Com firma. CNPJ e tudo.

O Perfume é mecânico, dos bons. Trabalha em oficina de renome na cidade. O Dom tá no Paraná, no comércio de importados.

O Jonas é gerente da seção de horti-fruti de um dos supermercados mais tradicionais da cidade. A Katrina também tá firme, em outro mercado, já tem uns dez anos.

O Márcio Rogério, eterno pato do Educador nas Damas, tava trampando com serralheria, agora tá se dedicando exclusivamente ao comércio on line e o Luís, freguês fidelíssimo no futebol de botão, tá na construção civil.

O Raniel parou o carro no meio da rua pra mostrar a filhinha recém-nascida pro Educador. Virou pizzaiolo.

O Educador encontrou a Ísis no Drive-Thru do McDonald's. Depois de um tempo, já tava dando treinamento e supervisionando o pessoal. Chefe de Seção. A Alícia tava fazendo Administração e trabalhando no hospital.

O Mizael trabalha na Doceria e toca uma empresa de limpeza pós-obra. O Paulo Vitor se especializou em gesso. Mais dois com CNPJ.

O Educador também deu seus pulos. Também atua em vários ramos. Virou Mestre de Cerimonial de Formatura. Narrador de Solenidade de Colação de Grau.

E não é que numa dessas teve a honra de chamar a Bianca, sua aluna do Projeto, pra receber o diploma de Gestão Financeira?

E aí foi inevitável. Viu passar um filme inteiro, de quase dez anos de duração, nos dois minutos que a moça levou pra subir ao palco, cumprimentar as autoridades, colar grau, assinar o certificado, receber o canudo e fazer as fotos.

Pior que nem tinha como chorar ali. Chama o próximo e segue o fluxo. Só foi desaguar no fim da cerimônia, quando tocaram O Rappa.

"Se eu ousar catar

Na superfície de qualquer manhã

As palavras de um livro sem final

Sem final, sem final, sem final, final

Valeu a pena, ê, ê!

Valeu a pena!

Sou pescador de ilusões!"