CAR-NA-VAL
"Atenção mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados e povo de rua: tirem dos lixos deste imenso país restos de luxos. Façam suas fantasias e venham participar deste grandioso 'Bal Masqué'."
O aviso sonoro da Marquês de Sapucaí soou a primeira vez, enquanto a diretora de ala nos dava as últimas indicações antes do espetáculo começar. Respirei fundo, tentei pensar, mas não consegui. Quando eu tinha 8 anos, falei para o meu então melhor amigo, João, que conseguia ficar sem pensar, fiz uma demonstração pra ele. Que ingenuidade da minha parte. Eu realmente estava pensando.
16 anos depois, que ingenuidade da minha parte achar que eu conseguiria pensar. Eu era incapaz de concatenar as informações a ponto de formar um pensamento crítico. Apenas me cabia viver, sem muito avaliar.
O segundo aviso sonoro soou e nós andamos de mãos dadas. Ao meu lado, estava Oxum, não só uma, mas dezenas delas; eu sabia que nada me ocorreria se Oxum comigo estivesse. Enquanto ela brilhava, eu a encarava admirado.
Andamos mais uma vez de mãos dadas, eu queria estar nervoso, queria pensar, queria chorar, queria algo que me tirasse da inércia, até que enfim o primeiro refletor estourou em cima de mim e todas as mãos se soltaram. Não éramos mais nós, era eu. Não era mais sobre não sentir nada, era sobre sentir tudo, inclusive a beleza do carro de Oxum atrás de mim. Eu estava lá, na passarela do samba, numa ala de uma escola, desfilando na Marquês de Sapucaí.
Me permita dizer que nos momentos de maior insegurança e desesperança da pandemia, eu lembrei do carnaval: “isso vai passar, e eu ainda vou viver o carnaval do fim do mundo”. E, de repente, eu estava lá. Pelo tempo cronológico, foram apenas 50 minutos de desfile; no meu coração, fez-se uma odisseia.
A experiência de desfilar é certamente descritível, mas eu não sei quais palavras usar, não sei quais sinônimos se aproximam e sequer sei qual sentimento é o mais adequado. Se for pra dizer algo, vou dizer o simples: FO-DA!
Quando meus pés chegaram na dispersão, eu tive a certeza que até o fim estarei lá, levando meu corpo junto com meu samba, até não poder mais pisar no solo sagrado do samba que é o meu lar.
Não há tristeza que suporte a alegria. A Viradouro já falou e eu ratifico essa informação, com assinatura e firma em cartório. A alegria do carnaval vem muitas vezes em forma de choro. O choro que veio do reencontro com o maior festival da terra foi inevitável, o choro de saudade das ruas movimentadas, dos jovens se divertindo, das crianças conquistando as ruas, das baterias ecoando por cada esquina do Centro do Rio, das fantasias e licenças poéticas que atravessaram o metrô, da irreverência feliz que só o brasileiro têm, e que durante anos esteve longe da materialização de sua maior festa.
Por mais que eu tente, é impossível falar e descrever o carnaval. É impossível descrever o reencontro do povo com sua festa. Sinto tanto quanto me é possível, sinto sabendo que na chuva de confetes deixo a minha dor e na avenida deixo a minha pele preta e minha voz. Sinto sabendo que estamos achando o tom e o acorde com lindo som para fazer novamente feliz o nosso cantar. Sinto esperança de dias melhores, no sincretismo do dia 23 de abril de 2022, em que Beija-Flor, alvorada e São Jorge se encontraram na Marquês de Sapucaí. Sinto na alegria centenária da minha amada Portela. Sinto na alegria de um povo sofrido, que tal qual o edifício: balança, mas não cai.
Sinto na lembrança do dia 19 de fevereiro de 2023, em que a chuva se derramou sobre mim, dentro da Marquês de Sapucaí, enquanto, novamente, a Beija-Flor me relembrava do quão subversivos e guerreiros somos nós, amantes do carnaval. Que bela revolução fazemos. A mais bela de todas revoluções. A revolução abençoada por aquele que mesmo probido, continua olhando por nós.
Sinto, sobretudo na certeza que o carnaval não existe porque a vida é boa, mas porque ela TEM que ser boa.
Tem que ser boa.
Porque merecemos.
Porque será boa.
Porque faremos que seja boa.
E ainda que não seja por alguns momentos, tudo bem.
É carnaval.